Pesquisadores repudiam estudo chinês de manipulação de embriões humanos

A pesquisa, pela primeira vez, editou o genoma de células embrionárias para combater uma doença hereditária. Segundo os críticos, a técnica é insegura e questionável do ponto de vista ético

por Isabela de Oliveira 11/05/2015 15:00

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Embriões humanos: editar o genoma nessa fase pode gerar mudanças genéticas imprevisíveis que passariam a gerações futuras, alertam especialistas (foto: Divulgação)
Uma pesquisa feita por especialistas chineses surpreendeu a comunidade científica e levantou sérios debates sobre a ética em pesquisas: pela primeira vez, o genoma de embriões humanos foi editado, anunciaram os autores. A experiência vem causando reações de estudiosos de todo o mundo, preocupados tanto com os riscos que experimentos desse tipo podem trazer quanto com a ideia de a ciência perseguir a “fabricação” de pessoas “perfeitas”.

A pesquisa foi conduzida discretamente pela equipe de Junjie Huang, nos laboratórios da Universidade Sun Yat-sen, na cidade de Guangzhou, e os especialistas da área só ouviam rumores não confirmados de que ela estava em andamento. Ontem, a Sociedade Internacional de Pesquisa de Células-Tronco (ISSCR) criticou a iniciativa e reforçou mais uma vez o pedido de moratória para as tentativas de edição genética de embriões humanos. Os especialistas ligados à sociedade afirmam não ser possível, atualmente, dizer que perigos esses estudos trazem e defendem que tais procedimentos devem passar, antes da tudo, pela peneira das discussões públicas.

Junjie e equipe, contudo, atropelaram o debate e testaram em material humano um procedimento que, até então, só tinha sido feito em embriões de porcos, ratos, vacas e ovelhas. O grupo até tentou diminuir as inquietudes internacionais utilizando embriões não viáveis, isto é, que não têm chances de nascer. O material, coletado em clínicas chinesas de fertilização, teve editado o gene responsável pela beta-talassaemia, desordem do sangue hereditária e genética que impede o organismo de produzir as quantidades ideais de hemoglobinas.

Percurso discreto
Nem o cuidado de usar células inviáveis nem a gravidade do mal pesquisado pouparam a equipe chinesa de críticas. As resistências começaram na hora de publicar o estudo, rejeitado pelas duas mais influentes revistas científicas no mundo: Nature e Science. Então, Huang enviou o estudo para a Protein & Cell, que o recebeu em 30 de março. No dia seguinte, a pesquisa já havia sido aprovada para publicação e, em 18 de abril, tornou-se disponível na versão on-line do periódico, de acesso aberto. Desde então, passou praticamente despercebida, até que, na quarta-feira à noite, a Nature publicou um texto criticando o experimento de Junjie, chamando a atenção da comunidade científica.

A Nature já tinha, em sua edição de 12 de março, publicado um comentário assinado por importantes cientistas da área que se diziam preocupados com empreitadas de edição de embriões por questões de segurança e de ética. “Há também o medo do impacto negativo que poderia ter sobre importantes trabalhos que envolvem o uso de técnicas de edição de genoma em células somáticas (não reprodutivas)”, escreveram os autores, que incluíam Edward Lanphier, pesquisador da Aliança para Medicina Regenerativa, organização internacional que reúne 200 empresas dedicadas ao estudo de organismos vivos; e Fyodor Urnov, um dos autores da primeira tecnologia de edição de genoma, a nuclease dedos de zinco.

Para Regina Parizi, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, é natural que o trabalho chinês desperte desconfiança, devido à forma como foi conduzido. “Ninguém viu ou acompanhou esse trabalho antes, e isso cria uma reação. As revistas internacionais só criam resistência quando há problemas na metodologia ou no nível de informação”, diz a médica, explicando que, antes de serem publicadas, as pesquisas são avaliadas e criticadas por pesquisadores visitantes. Costumam, além disso, ser apresentadas em congressos internacionais. “Não é questão de julgar ou não o mérito do trabalho, mas sim a lisura e a transparência com as quais foi conduzida uma questão como essa, de alteração no genoma de um embrião.”

Gerações futuras
É praticamente consenso entre pesquisadores que a edição genética mostra-se promissora para tratar doenças graves. Procedimentos parecidos, aliás, já são uma realidade. A diferença é que as intervenções são feitas em células que não estão ligadas à reprodução e, por isso, não podem ser passadas para gerações futuras. Por exemplo, a Sangamo BioSciences, empresa onde Fyodor Urnov é pesquisador, realiza testes clínicos para avaliar a aplicação de edição de genoma como uma “cura funcional” para a Aids. A esperança é que a aplicação intravenosa de células T modificadas permitam que os pacientes suspendam os medicamentos antirretrovirais. Há também um ensaio de fase I em pacientes com beta-talassemia previsto para este ano. Mas nem o esperma nem os óvulos são afetados nesse caso.

Quando se trabalha com embriões, como fizeram os chineses, promovem-se alterações que seriam passadas adiante por gerações. E, aí, alertam os cientistas, o efeito é imprevisível. Há medo, ainda, de que as técnicas sejam exploradas para fins que não visam a cura e a erradicação de doenças. “Estamos preocupados que o clamor público sobre uma infração ética possa dificultar uma área promissora de desenvolvimento terapêutico, ou seja, fazer as alterações genéticas que não podem ser herdadas”, disseram Lanphier e Fyodor no comentário na Nature.

Hoje, 40 países desencorajam ou proíbem a edição genética de embriões humanos. Na Europa Ocidental, por exemplo, 15 de 22 nações proibiram a prática. Regina Parizi diz que o Brasil obedece aos preceitos da Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, da Unesco. “O documento aborda que esses estudos devem procurar tratamentos e cura para problemas de saúde, e não alterar o genoma ou duplicar com clonagens”, esclarece a médica.

Imatura
De certa forma, os cientistas chineses seguiram a recomendação, mas sem almejar, de forma clara, um tratamento ou cura para a beta-talassaemia. Na realidade, a ideia era substituir os genes que as provocam, de forma que eles não possam influenciar o próprio embrião e as gerações que poderiam ser fruto dele. Para isso, utilizaram uma técnica chamada CRISPR/Cas9. A equipe realizou o procedimento com 86 embriões.

Dos 71 embriões que sobreviveram, 54 foram geneticamente testados. Essa análise revelou que apenas 28 tiveram êxito e que apenas uma fração deles continha material genético substituto. “Se desejarmos aplicar essa técnica em embriões normais, precisaremos de uma taxa de substituição genética de 100%”, declarou Junjie Huang, à Nature. “Suspendemos o experimento porque pensamos que essa técnica ainda é muito imatura”, admitiu.

Desenvolvida recentemente, a CRISPR/Cas9 já trouxe muitos avanços. Mas Lanphier e Fyodor dizem que não conseguem ver como ela poderia oferecer benefícios terapêuticos em relação aos métodos que já existem. “O aumento da dose de nuclease (uma enzima) aumentaria a probabilidade de o gene mutado fosse corrigido, mas também aumentaria o risco de que cortes sejam feitos em outro local no genoma”, afirmaram. Além disso, uma modificação genética indesejada no embrião poderia ser indetectável até o nascimento ou mesmo se manter escondida por anos até se manifestar.

Diferença

Doenças genéticas, como o nome indica, ocorrem quando há um erro nos genes. Podem ser provocadas por tabagismo, alimentação ruim ou exposição à radiação, por exemplo. O câncer é classificado como uma enfermidade dessa natureza. Já a doença hereditária é transmitida dos pais para os filhos e se manifesta em alguma etapa da vida. Um exemplo é o diabetes tipo 1. O tipo 2, ao contrário, é adquirido com hábitos pouco saudáveis.

ENTREVISTA
Salmo Raskin, integrante das fases iniciais do Projeto Genoma Humano, diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, em Curitiba, e professor das Faculdades de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e da Universidade Positivo

A pesquisa com embriões humanos é novidade?
Não, na Inglaterra é regulamentada desde 1980, e, no Brasil, é permitido fazer pesquisas com embriões humanos que sobram nas clínicas de reprodução assistida. Mas não existe edição de genoma. O estudo chinês é absolutamente inusitado nesse sentido, até porque utiliza uma técnica muito nova. O que a gente tenta é corrigir um defeito com terapia genética, que induz o organismo a se autorreparar, produzindo suas próprias proteínas. Uma coisa é pegar as células de uma pessoa, corrigir e colocar de novo. Nesse caso, o pior cenário é o paciente sofrer um dano no tecido. Mas os cientistas chineses fizeram algo diferente, que foi editar células germinativas. Falando de maneira muito superficial, ou dá muito certo ou dá muito errado. Mas o fato é que esse método novo não é necessário hoje para evitar que uma criança nasça com uma doença hereditária. É possível fazer isso por meio da fertilização in vitro, na qual os embriões que não têm o problema são selecionados.

Por que quase ninguém ficou sabendo dessa pesquisa?

Ninguém sabia. Começamos a desconfiar quando a Nature anunciou que algo nesse sentido seria publicado em breve. Não é por acaso que foi feita na China, um país onde a regulamentação ética das práticas é suave. Há casos de cientistas americanos que não conseguiram aprovação para suas pesquisas e foram para lá. A maioria dos cientistas não soube porque o que acontece lá não faz parte do que é praticado no resto do mundo. O grupo ultrapassou uma série de questionamentos éticos e técnicos. Na realidade, acredito que ainda nem deveríamos estar discutindo a parte ética, pois nem do ponto de vista científico estamos aptos para isso. Não sabemos se está resolvido, se é seguro ou se é eficiente. Acho que é um trabalho muito mais do que precipitado.