Velhice sem tabus: quase 3 milhões de idosos moram sozinhos no Brasil

Dados do IBGE confirmam: o brasileiro está vivendo mais - em média, 74,6 anos - e com mais saúde e vigor. Diante de tal cenário, muitos idosos insistem em manter a independência e se recusam a morar com os filhos

por Carolina Samorano 11/01/2014 10:00

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Os anos passam, a nossa pirâmide etária — aquela que mede a população por faixa etária e que tem na base os mais jovens — já está em vias de se tornar um retângulo e, ainda assim, envelhecer segue um tabu. Envelhecer livre e solitariamente, então, deve causar discussões quase tão inflamadas quanto o futebol. O que fazer com os idosos que, indo cada vez mais longe em seus aniversários e com saúde sobrando — graças aos avanços da medicina —, escolhem simplesmente seguir a vida sozinhos e independentes, ignorando os clichês de se abrigarem em asilos ou em quartos nas casas dos filhos? O assunto rende. O que é óbvio, embora às vezes difícil de enxergar, é que a velhice será cada vez mais uma realidade presente, basta acompanhar os cálculos sobre a expectativa de vida do homem. No último 2 de dezembro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) atualizou os dados: hoje, os brasileiros vivem, em média, 74,6 anos, exatamente cinco meses e 12 dias a mais que em 2011.

Mas não é apenas a vida um pouco mais longeva que tem feito o cenário da população de idosos mudar. Os anos a mais de vida têm sido, em boa parte, sem doença e debilidade. Os idosos trabalham, mantêm a agenda ocupada, estão mais atentos à saúde. O mesmo IBGE divulgou, em novembro passado, um estudo que mostra que 27% dos idosos brasileiros — pessoas com 60 anos ou mais — estão no mercado de trabalho. O próximo número é apenas uma consequência de todos os outros aqui expostos: existem no Brasil 2.816.470 idosos morando sozinhos. No Distrito Federal, são 26.426 cuidando da própria vida e pouco dispostos a abrir mão da liberdade e da independência em nome de uma vida “mais segura” — mas também, muitas vezes, menos confortável — ao lado de familiares ou em instituições de longas permanência, os antigos asilos.


Janine Moraes/CB/D.A Press
Quem: as irmãs Lia Abreu Veiga e Marlene Abreu Costa Idades: 78 e 76 anos Viúvas há 11 e 24 anos, respectivamente Moram com: cada uma no seu quadrado, com vizinhos bastante familiares (foto: Janine Moraes/CB/D.A Press)
  Conheça histórias de pessoas que decidiram se manter donas de suas vidas, mesmo depois de entrarem para as estatísticas da terceira idade. Elas perderam o companheiro em algum momento da vida, mas não necessariamente entregaram os pontos quando a solidão bateu à porta. Algumas moram sozinhas, outras descobriram a paixão por viajar ou arrumaram soluções para driblar os cômodos da casa vazios: foram para flats ou, conscientes de suas fragilidades, contrataram um cuidador.

“As gerações que hoje têm entre 60 e 75 anos desfrutam de condições de vida muito melhores: os sistemas de pensões e de saúde, o acesso à educação, à tecnologia de informação e de comunicação e a melhoria da infraestrutura urbana e rural permitem que os cidadãos, quando envelhecem, possam empreender novos projetos de vida, cuidar-se, desfrutar dos bens sociais e culturais e aprender coisas novas”, analisa Mayte Sancho, diretora científica da Fundación Matía, uma instituição espanhola sem fins lucrativos dedicada a cuidar de idosos e a produzir conhecimento a fim de melhorar sua qualidade de vida.

Ela lembra, no entanto, que, normalmente, o momento em que as famílias passam a pressionar o idoso para que ele saia da própria casa e passe a morar com um parente, um cuidador ou em uma instituição é justamente aquele em que julgam que o idoso já não consegue mais cuidar de si — esteja esse julgamento certo ou não. “Atualmente, o número de idosos morando sozinhos aumenta sem parar. O que é, a princípio, um indicador de competência para esse grupo da população cada vez mais longevo, mas também autônomo, capaz e independente”, observa a cientista. “Mas, quando a solidão se une à dependência, tudo muda. Aparece a fragilidade e, claro, as famílias passam a buscar soluções mais seguras e confortáveis para seus velhos”, diz.

A convivência com os filhos hoje, no entanto, não é mais como em tempos passados. As mulheres, cuidadoras natas, estão inseridas no mercado de trabalho e já não têm mais tanta disponibilidade para dar a atenção necessária ao familiar. Além disso, lembra Mayte, as casas são menores e, muitas vezes, hostis a uma pessoa que precisa de cuidados. “E o mais importante: o idoso perde suas referências e seu espaço de poder e decisão, que é a sua casa. Por isso, pelo menos na Espanha, cada vez menos pessoas aceitam ir morar com os filhos quando perdem sua independência”, conclui a especialista.

Ter o poder de decidir o que fazer quando esses tempos chegarem, no entanto, está mesmo nas mãos dos jovens. Planejar uma velhice saudável e segura enquanto ainda é tempo, dizem médicos e estudiosos, ainda é a melhor forma de não se ver obrigado a aceitar decisões tomadas pelos outros no futuro.

“O lema que reforço sempre é ‘tomar decisões a tempo’”, afirma Mayte Sancho, da Fundación Matía. “Cuidar da saúde, da alimentação, fazer exercícios físicos, cuidar das relações sociais, participar de atividades com sentido para a sua vida. Mas também decidir sobre sua casa e avaliar se ela é adequada ou não para que você possa viver muitos anos nela — mesmo que necessitando de ajuda —, se é acessível, se o bairro é bom, se está próxima da sua família… Planejar é organizar o futuro e encará-lo de frente. Negar a velhice e suas consequências, positivas e negativas, seria um grande erro.”

Talvez justamente porque o assunto assume ares de tabu, o tal erro ainda costuma ser recorrente. Segundo Nanci Soares, assistente social e professora assistente doutora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), a realidade na Universidade Aberta da Terceira Idade (Unati), onde é coordenadora, é bastante diferente da ideal. “Nós percebemos a dificuldade dos idosos em fazer um projeto pessoal. Normalmente, eles fazem um projeto familiar”, conta. À medida que passam a aceitar a velhice, entretanto, começam, ainda que tardiamente, a traçar um plano de recuperação. Em geral, esse plano inclui voltar ao trabalho, onde ele tem uma função social e uma posição de maior prestígio; envolver-se em atividades voluntárias; começar a tirar do papel atividades que não teve tempo de realizar antes; sair da rotina com viagens ou atividades de lazer e participar de espaços coletivos, como grupos para a terceira idade.

“Costumo dizer que envelhece bem quem conseguiu construir sabedoria ao longo da vida para se valer dela quando precisar enfrentar a inexorável queda da vitalidade”, pontua o geriatra Fernando Bignardi, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento da Universidade Federal de São Paulo. Nossos representantes dos 14,9 milhões de idosos brasileiros, segundo o IBGE, têm histórias distintas, algumas mais alegres, outras nem tanto. Mas, de sabedoria, todos compartilham.

Boas companheiras

Uma casa grande, construída ao lado do marido, muitos anos vividos, uma lembrança em cada cômodo. Para muita gente, depois da viuvez, tanto espaço e tanta saudade passam a não fazer mais sentido. A casa fica grande demais para uma pessoa só e vender ou alugar o lugar acaba sendo a alternativa mais óbvia. Não para dona Lia Abreu Veiga, de 78 anos, e a irmã mais nova, Marlene, de 76. Lia já tem 50 anos de Brasília, 30 deles vividos na casa em que mora, no Park Way. Mas arredar o pé do pedaço de chão que ergueu na cidade, nem pensar. Marlene, que veio para a capital quando o marido, militar, foi transferido, também nunca traçou planos de deixar o apartamento em que viveu com ele e os três filhos, na Asa Sul. E não, mesmo viúvas e morando sozinhas, juntar os trapos e dividir a vida e o espaço jamais passou pela cabeça dessas irmãs.

Não que morar sozinha signifique ser sozinha. A rotina continua ocupada por encontros com as amigas — as sextas-feiras são para o cinema, as quartas para a manicure e o cabeleireiro no apartamento de Marlene — e pelos afazeres do dia a dia. Além disso, sempre nas primeiras segundas-feiras do mês, a mulherada da família tenta se reunir para um chá e um bom papo. Estão convidadas filhas, noras, netas e demais agregadas à grande família. Tão grande que se espalhou pelo quintal de dona Lia.

No terreno onde construiu sua casa, dois dos três filhos ergueram seus “puxadinhos”. Cada um na sua, a apenas uma batida de distância da porta do vizinho. Morar tão perto dos filhos é, para dona Lia, não apenas um acalento para a saudade, mas uma segurança. Foi justamente para o colo do vizinho que Lia correu quando perdeu o marido. “Quando ele faleceu, não queria voltar para casa, era triste. Fiquei um mês dormindo na casa do meu filho. Mas, depois, passou e eu voltei.” Além disso, foi lá que ela bateu quando precisou de ajuda médica certa vez que passou mal. “Pedi ajuda e foi meu neto quem chamou a UTI móvel.” O susto, causado por um pico de pressão, passou. Mas, só por segurança, ela mantém a assinatura com o serviço de atendimento móvel.

Marlene também já soube o que é morar quase junto dos filhos, ainda que separado. Antes de se casar, uma das filhas era sua vizinha de porta. “Depois que se casou, ela se mudou e eu fiquei sozinha.”

Ela não pretende se mudar tão cedo. Apegou-se à quadra, à proximidade com os médicos e aos serviços que encontra por ali. “Ando para todos os lados. Por enquanto, não preciso incomodar ninguém, então não incomodo. A gente, quando fica velho, fica cheio de mania. Morando com alguém, vamos acabar discordando das coisas, se metendo nos assuntos. Prefiro assim”, diverte-se.