Vencedor do Jabuti em 2000, Menalton Braff volta com livro de contos

"Amor passageiro" tem viagens sem volta, locomotivas nostálgicas, entroncamentos, boleias de caminhão, saguões de aeroportos.

por Carlos Marcelo 24/05/2019 09:41
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(foto: Divulgação)
Personagens em deslocamento – no espaço, no tempo – movem os contos de Amor passageiro. Lançado pela editora paulista Reformatório, o 25º livro de Menalton Braff tem viagens sem volta, locomotivas nostálgicas, entroncamentos, boleias de caminhão, saguões de aeroportos. Homens à mercê da "vertigem dos quilômetros" e de confrontos com o passado em estradas de terra que levam até casas de "telhas quebradas, janelas abertas, o mato cobrindo as passagens, o ar escuro com cheiro de mofo". Entre achados e sentenças, ("A coragem é uma espécie de desamor, um desapego"), Braff apresenta narrativas concisas, especialmente fortes em contos como "Dois plátanos" e "No cruzamento". Vencedor do Prêmio Jabuti de Livro do Ano- Ficção em 2000 com À sombra do cipreste, o gaúcho da pequena Taquara concedeu, por e-mail, entrevista ao Pensar.

O que une os contos de Amor passageiro?
O conto, por definição, é uma narrativa literária com início, meio e fim (não obrigatoriamente nesta ordem), mas com isso se estabelece sua independência como objeto artístico. Ele é produto de um momento, uma experiência, um estado. A organização dos contos em um livro pode ligá-los por temas, personagens, espaços, tipos de conflitos, enfim, por variados vínculos. Mas isso não é condição sine qua non para juntá-los. Os contos de Amor passageiro foram escritos em períodos e condições diversos (isso por mais de uma década) com incursões pelo realismo mágico ontológico, realismo mágico metafísico (segundo a categorização de Splinder) ou simplesmente realismo. Há, claro, entre os contos, mesmo com o uso de técnicas narrativas diversas, temas como a morte, a solidão, mas sobretudo alguma sensação de perda, exceto, claro, para o conto Proto-colo, que é uma outra história, teve intenção diferente, é uma experiência diferente.

Há uma citação de Lucíola, de José de Alencar, na abertura de um dos contos. É um dos escritores de sua predileção? Quais autores brasileiros de outros séculos sempre merecem releituras?
Comecei meu caminho de leitor de literatura adulta pelo José de Alencar e não há como não encontrar nele um de nossos mais bem acabados romancistas. Que não só pelo projeto (urbanos, indianistas e históricos), aquela consciência de uma obra nacional em construção, mas também como trabalhou em seus romances uma língua que se diferenciava da língua portuguesa de Portugal. A organização estrutural de seus romances são verdadeiras aulas de técnicas do romance. Mas, além de Alencar, Machado de Assis, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Clarice Lispector são autores brasileiros que não podem ser jamais esquecidos.

Em muitos contos, os personagens estão em movimento. Em um deles, "A última viagem", há uma locomotiva que "levara pessoas da cidade para outras cidades, pessoas que atravessaram oceanos, cortaram os céus, circundaram o mundo". Como as vidas em trânsito podem inspirar as suas criações?
Minha biografia, até determinado momento, cruza com estações de trens, rodoviárias, navios e portos, mudanças em cima de caminhões. Até os vinte anos já tinha morado em umas dez cidades. Não sei até que ponto tal circunstância me influenciou na construção de minhas narrativas. Sei que o transitório, o passageiro me fascinam, a realidade líquida é onde me sinto viver.

"A coragem é uma espécie de desamor, de desapego". Esta coragem, baseada no desapego, também é necessária para escrever ficção no Brasil?
Provavelmente. No meu caso, não tenho dúvida. Como autor, eu crio mundos, habito neles, mas desde sempre estou sabendo que uma hora eu volto e abandono tudo. Outro aspecto, o mais prático, ficcionista, no Brasil, é o amor ao desapego. Se o propósito é fazer arte literária, o autor precisa esquecer as necessidades materiais. Ele precisa de outra atividade, uma atividade paralela, para sobreviver.

O que mudou em sua trajetória como escritor depois de ganhar o Prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2000 com a coletânea À sombra do cipreste?
Mudou o entorno da literatura, não ela. A vida social do escritor, seu relacionamento com o mundo editorial, suas relações com a mídia. Na verdade, a escrita continua a mesma, mas as decorrências da escrita, ou seja, aquilo que o torna existente como escritor, isso tudo muda inteiramente. O início de uma carreira literária no Brasil é extremamente difícil. Sem que algo de extraordinário aconteça, sem que haja uma explosão, as portas das editoras estarão todas fechadas. Sem o Jabuti é provável que tivesse escrito os 25 livros que tenho publicados, talvez até mais, mas estariam todos inéditos. E aí aquele tripé do Antonio Candido: autor – obra – público.

Em entrevista ao projeto Como eu escrevo, o senhor menciona o desejo de escrever um romance histórico com base na vida de Bárbara Heliodora. Como surgiu esse interesse? O que seria necessário para concretizá-lo?
O interesse surgiu do conhecimento fragmentário da história da Bárbara. Em criança cantávamos, lá no fundo do Rio Grande, alguma coisa assim: "Bárbara Bela/do norte estrela/que o meu caminho sabes guiar/De ti ausente/triste somente/as horas passo/a suspirar". Quando descobri a origem daquilo fiquei todo eriçado. A Bárbara era aquela, a esposa de Alvarenga Peixoto. Sua vida, suas lutas, o papel que desempenhou na vida dos inconfidentes, tudo isso me atraiu muito. Bem, o que seria necessário: a possibilidade de passar uns oito meses ou mais em Ouro Preto pesquisando. O máximo que consegui foi uma semana.

Como a vida em uma pequena cidade do interior brasileiro influencia a sua literatura?
Devo muito às dezenas de cidades pequenas em que vivi. Existe uma experiência de cidade pequena impossível em uma metrópole. Na cidade pequena, por exemplo, o candidato a prefeito vem conversar com você, o farmacêutico te telefona se você não aparece para aquela injeção, enfim, as relações são de primeiro grau, quando não, de segundo. Tudo é mais próximo, inclusive as pessoas. Há quem ache sufocante, eu tiro algum proveito.

De onde vêm as suas histórias?
Pescoço de coruja. O olhar roda os 360º. As histórias acontecem à nossa volta, o que falta a gente inventa, distorce, contorce, faz até realismo mágico.

Trecho do conto “Dois plátanos”

"Não é um retorno definitivo. Vão ficar decepcionados, mas não posso passar de um mês, as obrigações à minha espera. A gente vai assumindo, sem perceber vai acumulando, bem, mas é pista simples e, quando vê, vive em função do trabalho. Mas se não fosse assim? Cara doido, ultrapassou o caminhão na faixa contínua, é pista simples e tenho de diminuir a marcha, como eles?, uns sacos de mamona e outros de piretro, umas notinhas embrulhadas num lenço e um par de sapatos no fim do ano. Tudo asfaltado, pois não é que o progresso?! As portas que eu tive de arrombar, então, nisso ninguém pensa? Os anos. Não podia contar como vivia, seria pura tristeza. Apesar de tudo."

 Amor passageiro
 • De Menalton Braff.
 • Editora Reformatório
• 160 páginas
• R$ 38,00.