Poder e futebol na Rússia

Jornalista e pesquisador Emanuel Júnior recupera a história da relação entre política e esporte em território russo e fala sobre o que está em jogo com a Copa do Mundo 2018

por Renan Damasceno 15/06/2018 10:38
Alexandre Junior
(foto: Alexandre Junior)
Moscou
– Na noite de 10 de maio, o presidente russo Vladimir Putin entrou no rinque de hóquei no gelo no Domo Bolshoi, em Sochi, efusivamente aplaudido pelo público. De patins, capacete, proteção e uniforme vermelho, o presidente, reeleito com 76% dos votos três dias antes, marcou cinco gols na vitória por 12 a 7 em partida amistosa envolvendo ex-campeões olímpicos, políticos proeminentes e oligarcas.

Seja pela formação física e disciplinar ou como instrumento de propaganda do governo, política e esporte andam de mãos dadas na Rússia, segunda maior potência olímpica da história, atrás apenas dos Estados Unidos, no quadro geral de medalhas. No futebol, esporte mais popular do país, não é diferente. Durante o período soviético, os principais clubes eram ligados a sindicatos de trabalhadores ou diretamente às forças do Estado, como o Dinamo (ligado ao Ministério da Administração Interna, especialmente à polícia secreta NKVD, posteriormente, KGB), o CSKA (iniciais de Casa Central do Exército), Lokomotiv (trabalhadores ferroviários) ou Torpedo (indústria automotiva).

“Os dirigentes soviéticos, desde o princípio, acreditavam que o esporte tinha funções social, cultural e política de extrema importância”, conta Emanuel Júnior, autor de A história do futebol na União Soviética (Ed. Ludopédio, 2005). “Por isso, tanto o esporte como a própria cultura sempre tiveram atenção do Estado.”

A Rússia se prepara para sediar seu terceiro evento de primeira grandeza no esporte, depois de receber os Jogos Olímpicos de Moscou’1980 e os Jogos Olímpicos de Inverno’2013. Putin terá, na Copa do Mundo, a chance de mostrar ao mundo uma visão menos bélica da Rússia, que, nos últimos cinco anos, ocupou o noticiário pela disputa para indexação da Crimeia, antes pertencente à Ucrânia, e pelo suporte a Bashar al-Assad na guerra da Síria.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o jornalista e pesquisador Emanuel Júnior recupera a história da relação entre política e esporte em território russo e fala sobre o que está em jogo com a Copa do Mundo’2018.


Ao longo do último século, qual foi o papel do futebol na sociedade russa? Ele ocupa um grau de importância semelhante, maior ou menor com o que ocorre no Brasil?
O futebol é o esporte mais popular na Rússia. E a popularidade do futebol no país remonta ao Império Russo, ou seja, é anterior à Revolução de Outubro. Quando as revoluções de 1917 eclodiram, o futebol já era tido como um esporte nacional. O primeiro clube de futebol na Rússia (St. Petersburg Football Club) surgiu em 1879 e era formado exclusivamente por britânicos. A Federação Russa de Futebol foi criada em janeiro de 1912 e logo se juntou à Fifa. Após o triunfo do Exército Vermelho na guerra civil, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) surge em 30 de dezembro de 1922. E os dirigentes soviéticos, desde o princípio, acreditavam que o esporte tinha funções social, cultural e política de extrema importância. Por isso, tanto o esporte como a própria cultura física – desenvolvimento do corpo como parte essencial do fortalecimento físico para a defesa da nação e para o bem-estar do povo – sempre tiveram atenção do Estado.

Como o futebol era visto por esses dirigentes?

O futebol era um enorme fenômeno de massas consolidado na sociedade russa, mas era visto como um instrumento de despolitização do proletariado, que poderia representar um desvio da luta de classes. É por isso que os esportes soviéticos sempre foram marcados por ideais e orientações anticomercialistas e formalmente amadoras. Portanto, o futebol tinha, sim, função social muito importante na engrenagem da sociedade russa.

Vários clubes de futebol surgiram, justamente, desta relação entre o futebol e poder. Por quê?
Na União Soviética, além do Partido Comunista, as organizações de massa eram parte essencial do novo sistema político. Eram como se fossem “correias de transmissão”. Os dirigentes soviéticos, desde o princípio, acreditavam que o esporte tinha uma função de extrema importância na engrenagem social. Além disso, havia a preocupação dos dirigentes com o caráter alienador do futebol. É diante desse contexto que percebemos por que no futebol soviético cada agremiação representava alguma sociedade esportiva, que era operada por instituições do país, como Exército, ministérios, empresas estatais, sindicatos, e, em alguns casos, diretamente pelo poder público municipal ou regional (sem falar de clubes que tinham patronos nas lideranças do partido ou no poder local).

Quais eram esses clubes e quem eles representavam?
Um exemplo de ligação entre clubes e um ministério é o caso dos Dinamo. Em 1923, foi fundada a Sociedade Esportiva Dinamo (SED), ligada ao Ministério da Administração Interna, especialmente à polícia secreta (NKVD, num primeiro momento e, posteriormente, KGB). Em 1925, a Sociedade Dinamo chegaria à Geórgia, com o Dinamo Tbilisi. Kiev (Ucrânia) e Minsk (Belarus) ganhariam o seu braço do Dinamo em 1927. Enquanto o Dinamo de Moscou era dirigido diretamente pela sede do aparato da segurança interna, os Dinamos de Kiev, Tbilisi e Minsk eram responsabilidade das representações do ministério em suas respectivas repúblicas. Outro clube ligado a um ministério, no caso o da Defesa, era o CSKA (Casa Central do Exército). Ou seja, era o clube do Exército Vermelho. Outros clubes tinham ligações com ministérios ou sindicatos, por exemplo, o Lokomotiv Moscou (Ministério das Ferrovias e trabalhadores ferroviários), Torpedo Moscou (representante de uma das maiores empresas automobilísticas da União Soviética), Zenit Leningrado, atual São Petersburgo (inicialmente ligado à indústria siderúrgica, posteriormente à Lomo – União de Óptica Mecânica de Leningrado) e o Dnipro Dnipropetrovsk, da Ucrânia (Sociedade Esportiva Voluntária Soviética dos Metalúrgicos).

E o que ocorreu com esses clubes após o fim da União Soviética?
As reformas implementadas por Gorbachev na economia (perestroika) e a abertura política (glasnost) tiveram repercussão direta nos clubes de futebol, bem como em toda a estrutura esportiva soviética. A ideia era que os clubes se tornassem autossustentáveis, estabelecendo relações de mercado. A questão não passava pela profissionalização dos clubes, pois o amadorismo era uma formalidade. Tratava-se mais de um processo de comercialização. Não haveria mais o apoio direto das instituições estatais, era preciso caminhar para um sistema de esporte privado e comercial.

Pensando, agora, no atual momento político da Rússia. Qual é o impacto para o país receber uma Copa do Mundo?

Os megaeventos esportivos podem ser considerados uma das mais poderosas manifestações contemporâneas da globalização porque têm reflexos nas esferas econômica, social e política da cidade e/ou país que os promove. Em termos econômicos, o sociólogo Giulianotti alude às cifras bilionárias envolvidas nestes torneios e à possibilidade de as cidades e países que sediam os eventos poderem “se vender”. Por essa razão, concordo com autores que dizem que a organização de megaeventos esportivos pode servir como instrumento de soft power, habilidade de influência e atração.

A Copa da Rússia vem depois de outros dois mundiais realizados em membros dos Brics. Por que esse interesse da Fifa nesses mercados?
No livro A história do futebol na União Soviética, abordo essa questão e recordo que todos os parceiros da Rússia nos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sediaram megaeventos esportivos nos últimos anos. Parece-me se tratar de uma estratégia geopolítica. Uma forma de se afirmar a nível internacional e de projetar outro status perante a comunidade global.