Bienal de Arquitetura e Urbanismo fala sobre ativismo e revitalização

Evento foi tomado como potencial valorizador da vila e instrumento na luta contra sua demolição iminente

por Carlos M. Teixeira* 23/02/2018 09:54

Vazio S/A/Divulgação
(foto: Vazio S/A/Divulgação)


As instalações estão espalhadas em cinco zonas de Nantou, incluindo um complexo de fábricas, ruas, edifícios residenciais, parques e edifícios históricos, sendo que o próprio evento foi tomado como potencial valorizador da vila e instrumento na luta contra sua demolição iminente. A principal exposição é realizada em um complexo fabril ao norte, que os curadores dividiram em três seções: Global South, Urban Village e Art Making City.

A principal delas, naturalmente, é a seção Urban Village e apresenta pesquisas, estudos de caso, open calls e uma compilação do gigantesco número de projetos feitos em universidades chinesas e estrangeiras sobre o tema. Parece que esgotaram as possibilidades de exposição: a seção se subdivide em Urban Village picture book, Urban Village photo and video room, Urban Village databank, Urban Village library, Urban Village info center, Urban Village lab, Urban Village voice etc. Arquitetos da Universidade de Columbia apresentaram Data-mining the Urban Village, uma instalação cujo objetivo é reunir toda literatura disponível sobre urban villages coletada por meio de “mineração de dados” (data-mining), buscada nas mídias sociais e em fontes acadêmicas e jornalísticas desde 2001. O resultado é uma linha do tempo tridimensional feita de pilhas e mais pilhas de papel que acumulam 400 mil páginas de textos.

A principal dessas exposições, Documenting urban villages, da arquiteta e pesquisadora Juan Du, apresenta um quadro evolutivo de 10 vilas de Shenzhen – entre elas West Gangxia, demolida em 2009, e Baishizhou (de 150 mil habitantes), vila ameaçada que já teve alguns de seus prédios demolidos em 2016.

A seção também inclui um laboratório de intervenções físicas na vila, como mobiliário urbano novo, requalificação de edifícios residências, construção de um centro comunitário e reforma de duas praças. Os projetos das praças e do centro comunitário foram coordenados pelos arquitetos da Urbanus, Liu Xiaodu e Meng Yan (também curadores da bienal), que souberam aliar pesquisa, projeto e ativismo com maestria, tanto na escolha dos locais de intervenção como na temática conceitual da bienal.

Mas há outros temas. A seção Global South: influence and resistance reúne experiências urbanas no Quênia, Brasil, Venezuela, Argentina, Cuba, México, Macedônia e Sul da China. Em princípio, ela dá voz a uma nova ordem global em formação entre os países emergentes, que, hoje, engendram uma rede de transações paralelas e independentes, dispensando a chancela cultural e econômica dos países do Norte. A curadoria é superficial ao classificar os assentamenos informais da América do Sul como “um modo de resistir à ortodoxia do Norte”, mas, ao menos, o tema tem potencial para ser desenvolvido algures e com uma curadoria menos acessória.

Geopolítica Curiosamente, os projetos bilionários que o governo chinês está implementando neste exato momento na África estão ausentes da exposição. São as  cidades, ferrovias, plantas, portos e minerações na Namíbia, Nigéria, Angola, Etiópia etc., todos construídos com dinheiro (e, em muitos casos, mão de obra) da China e endossando uma nova geopolítica Sul-Sul de fato.

Com curadoria de Hou Hanru, curador do Museu MAXXI de Roma, a seção Art Making City apresenta uma série de instalações, vídeos, murais e performances, que refletem como os artistas desta bienal (chineses, a maioria) usam a rua como local de intervenção, lidando com questões como a liberdade individual em espaços públicos e a participação dos moradores.

No dia da abertura, o artista Lin Yilin, ocupando uma via comercial de Nantou,  desenhou uma linha feita de objetos dos lojistas da rua – legumes, eletrônicos, bifuns, enlatados, carnes, peixes etc. Alguns lojistas não quiseram participar e, por isso, certos trechos da linha foram preenchidos por pessoas deitadas contratadas pelo artista. Yilin é conhecido pela performance Safely maneuvering across Lin He Road (1995), na qual ele fez uma parede de tijolos atravessar uma avenida movimentada de Guangzhou ao desmontá-la e remontá-la tijolo por tijolo.

Apesar das melhores intenções dos organizadores, tudo indica que nem todas as autoridades estão apreciando essa espécie de Glasnost de Shenzhen. No dia da abertura da bienal, o artista Hu Jiamin foi preso porque seu mural, Time discrepancy, um tríptico disposto na entrada do complexo fabril, apresentava uma pintura surrealista com uma cadeira azul desocupada no centro. A cadeira alude ao prêmio Nobel da Paz de 2010 concedido ao ativista político Liu Xiaobo, preso pelo governo e que não pôde comparecer à premiação em Oslo naquele ano, pedindo então que uma cadeira azul o representasse na ocasião. (Jiamin foi “liberado” uma semana depois.)

O dia seguinte foi a vez do artista Jiang Zhi. De acordo com o site SupChina, sua peça One photo of firework, exposta numa das fábricas reaproveitadas como galeria, foi retirada da mostra. Parte da seção Art making city, a foto reapareceu duas semanas depois, mas foi de novo removida, logo antes de uma visita oficial de autoridades de Shenzhen. O curioso é que a mesma obra já tinha sido exibida pelo artista na China, o que demonstra o humor imprevisível da censura nacional.

Intervenção humanista
Uma das intervenções da exposição Urban Village é o Playground de Nantou, proposto por nós, Vazio S/A, e não construído devido a “questões políticas”. O playground seria instalado num edifício abandonado construído ilegalmente e que, em meados de 2017, nos foi  apresentado pelos curadores por meio de fotos e desehos. Tínhamos então duas liberdades sobrepostas: ignorância sobre o contexto e carta branca para escolher o que fazer.

As muitas crianças nas ruas e a carência de espaços públicos em Nantou nos levaram à visão de um parque infantil em meio às ruínas de concreto. Como misturar água e óleo, o desafio do Playground de Nantou é manter algo da aspereza e das texturas selvagens da estrutura envelhecida com a atmosfera mágica e festiva típica dos brinquedos. Foi uma consideração por essa aspereza que levou à nossa paleta de materiais: malhas de vergalhão e placas de compensado, dois elementos delicados o suficiente para manter o encantamento, o silêncio e a reticência do prédio abandonado. Contrapondo-se à dureza daqueles materiais, as cores quentes propostas para o playground batem contra o cinza-concreto existente, enquanto os vários escorregadores transformam as lajes sombrias em plataformas para descer e brincar.

Em 2005, a Prefeitura de Shenzhen – disse-me o curador assistente, Yin Yujun – proibiu qualquer nova construção na vila em face da verticalização desenfreada e seus absurdos handshake buildings. Os proprietários do lote onde hoje está o edifício abandonado começaram a construção mesmo assim, que provavelmente foi embargada. Foi por isso que a obra ficou à deriva por anos a fio até a bienal apresentar o projeto do nosso playground às autoridades, em setembro de 2017. Inicialmente, disseram sim. Então, desenvolvemos o projeto, maquete, detalhes, protótipos, tudo. E depois disseram não...

Arquiteto, sócio do escritório de arquitetura Vazio S/A