Livro reconstitui a passagem de Ernesto De Fiori pelo Brasil

Organizado por Ivo Mesquita, recupera as andanças pelos trópicos do ítalo-alemão, artista cuja obra de traços livres e singulares é pouco conhecida no país

por Severino Francisco 26/01/2018 14:52
Reprodução do livro/Editora Capivara
(foto: Reprodução do livro/Editora Capivara)
Por caminhos tortos, a Segunda Guerra Mundial favoreceu a arte moderna no Brasil. Várias artistas europeus importantes emigraram para os trópicos para fugir do horror nazista. O ítalo-alemão Ernesto De Fiori era um artista de renome na Europa quando chegou ao Brasil, em 1936. Mas ele se destacava, principalmente, pela obra de escultor. Em face das dificuldades para exercer o ofício original, ele passou a se dedicar à pintura.

De Fiori não manteve contato com a elite modernista, mas, sim, com os operários do movimento, quem influenciou e recebeu influência de Volpi, Zanini, Galvez e Carnicelli. Ele frequentou o ateliê dos artistas do chamado Grupo Santa Helena. O livro Ernesto De Fiori – O exílio brasileiro, organizado por Ivo Mesquita, reconstitui a passagem do artista ítalo-alemão pelo Brasil, em edição esmerada, com 150 imagens.

Ivo Mesquita enfatiza que De Fiori não era um expressionista radical, como poderia ser um alemão no contexto explosivo da Segunda Guerra Mundial, nem se alinhava à matriz de Lasar Segall, emigrado no fim da Primeira Guerra: “Sua pintura não tem drama, suas paisagens são poéticas, pura contemplação, têm algo de Duffy, Signac ou Vlaminck, mas sem a elegância moderna desses artistas. Pelo contrário, são simples, diretas, rústicas por vezes”.

Nesta entrevista, Ivo Mesquita situa a relevância de Ernesto de Fiori, talvez o mais desconhecido dos artistas europeus emigrantes, revalorizado a partir dos anos 1980, com a chamada Geração 80, com o renascimento do interesse pela pintura.

Reprodução do livro/Editora Capivara
(foto: Reprodução do livro/Editora Capivara )
Como situar a obra de Ernesto De Fiori e o fato de ele ter se notabilizado pela produção de pintor no Brasil e de escultor na Europa?

Ele era um proeminente escultor no começo dos anos 1920 na Europa, numa vertente modernista que evoca a cultura clássica. No começo da carreira, ele era pintor. Ao se mudar para o Brasil, fugindo da Segunda Guerra Mundial, ele percebeu que era mais difícil produzir escultura no Brasil. Participou do concurso de esculturas para o Ministério da Educação no Rio de Janeiro, em 1937, projetado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Não foi selecionado. A pintura tinha a função de preencher o espaço de exílio no Brasil.

Como era São Paulo naquela época?
São Paulo era uma cidade provinciana, modorrenta. Por isso, ele começou a pintar. O interessante é que sempre foi tratado como um pintor visitante. Teria uma obra exilada. Meu entendimento é de que ele deixou marcas aqui. Zanini mostrou a relevância da produção escultural. Mas faltava demarcar a relação com os contemporâneos da pintura, Volpi, Rebolo. Em um segundo momento, a partir de 1939, ele comparte ateliê no Edifício Santa Helena. Ele se vê como parceiro. Não se liga à elite do Modernismo, a Mario de Andrade, Tarsila Amaral ou Oswald de Andrade. Liga-se aos pintores operários.

Em que momento a pintura de Ernesto De Fiori voltou a despertar a atenção?
Nos anos 1980, quando surge a geração que retoma a pintura, os artistas brasileiros olham para a obra dele e reconhecem um pintor singular. Começa a despertar o interesse a partir dele.

Como percebe a influência que exerceu e que recebeu do grupo Santa Helena? 
Ele se juntou com os artistas proletários, a arte naquele momento era camaradagem, trocavam experiências. Eles olharam para a pintura de De Fiori, mas ele também olhou para a pintura do grupo. Existem outros artistas imigrantes, exilados, fugindo da guerra. Há um aspecto interessante. A modernidade se deve em grande parte a esses grupos de intelectuais, artistas, escritores, matemáticos, filósofos, que emigravam na América, do Canadá à Argentina, que foram propagadores da ideia de modernidade e de humanismo. É parte de um processo que a gente chama de globalização. Estamos entre amigos. Os artistas não se formavam em universidades, se formavam nos ateliês. Aprendiam com os outros artistas. Havia uma intensa aprendizagem e troca de experiências.

Reprodução do livro/Editora Capivara
(foto: Reprodução do livro/Editora Capivara )
De que maneira a interação com a paisagem brasileira influenciou a pintura de De Fiori?

Faço uma divisão da obra dele. A mãe e o irmão moravam aqui. Logo que chega, o levam ao Oeste de São Paulo e até o Rio Paraná, pinta as queimadas. Se há um instante de encantamento, em seguida vem um desapontamento com a destruição. O segundo tema é a paisagem urbana, pinta muito São Paulo, com uma abordagem expressionista. A terceira são as marinhas e a represa de Guarapiranga. Era um velejador. Em 1953, ele vai como comandante da esquadra que participa da regata de Santa Catarina, e eles ganham. Algumas marinhas são magníficas. Tem outro lado que são as fabulações, são aquelas figurações, São Jorge e o dragão. É um repertório rico de imagens. Nos anos de guerra, é sempre metáfora do bem e o mal, contra o nazifascismo. Tem uma percepção idealista, evoca cenas medievais ou romanas. Não está vendo as cenas da guerra mesmo. Outra vertente são as cenas de cabarés. Ele era um frequentador de bordéis na Europa. E tinha pintores do interior europeu. Tirava os temas da cabeça dele ou de filmes. Tinha cartaz e tinha seis ou oito fotogramas dos filmes. É um imaginário de segunda geração, apropria-se de jornais, de cinema ou de imagens reproduzidas.

A que vertente da pintura De Fiori está ligado?
Ele é um artista que segue a vertente de uma pintura expressionista, com linhas e manchas que se fundem, superfícies vibrantes. Mas ele tinha um entendimento da pintura. As sucessivas camadas sempre dão um ar de inacabado. Talvez porque a escultura dele é muito clássica, econômica, posada, a pintura dele é muito estridente, vibrante. Nesse sentido, interessa aos contemporâneos. Não está preso a nenhum esquema das belas-artes ou dos modernistas.

Qual é o lugar de Ernesto De Fiori na história da arte brasileira?
Acho que ele tem um lugar entre nós. Passados quase 40 anos, é possível perceber que, embora filiado ao Expressionismo, De Fiori pinta de uma maneira muito livre e singular. Por isso, a partir da década de 1980, ele voltou a despertar o interesse de outros artistas. Outro aspecto importante é que, se a gente olha a pintura de marinhas dele, chegaremos à conclusão de que merece um lugar ao lado de Pancetti, que, por coincidência, era da Marinha mercante brasileira. Ele se irmana com um artista que é um dos grandes pintores da arte moderna no Brasil.