Paulo Mendes Campos, reúne pela primeira vez anotações dispersas que ajudam a captar o olhar arguto e poético do escritor

por 09/10/2015 12:30
Cia. das Letras/Reprodução
(foto: Cia. das Letras/Reprodução)
André di Bernardi

A editora Companhia das Letras lançou recentemente o ótimo De um caderno cinzento: crônicas, aforismos e outras epifanias, de Paulo Mendes Campos. Reunidos pela pesquisadora Elvia Bezerra, os textos dessa edição permaneceram inéditos em livro até agora. O escritor cria, com seu estilo peculiar, um delicioso mosaico sobre o Brasil e principalmente sobre os brasileiros. Paulo Mendes Campos atuou incisivamente na cena cultural brasileira, tendo publicado em jornais e revistas durante décadas.

O escritor mineiro tinha um hábito comum entre os seus pares, o de juntar cadernos. Ali ele registrou, minuciosamente, lembretes do cotidiano, poemas, curiosidades, ideias a serem desenvolvidas, frases, reflexões, planos os mais diversos. Em meio a esse material (são cerca de 55 cadernos que integram seu arquivo, hoje sob a guarda do Instituto Moreira Salles), sobressaem dois cadernos cinzentos, que “funcionavam como tubos de ensaio em seu laboratório de cronista”, como observou Elvia Bezerra, na apresentação do livro. Os textos inspiraram outros textos, publicados no jornal Diário Carioca e na revista Manchete.

Assim, o poeta viaja e fala sobre quase tudo que porventura cruza o seu caminho, da azeitona ao atletismo, da vodca ao silêncio, passando por Shakespeare até o lirismo peculiar de um trem de ferro, sem esquecer a alma tristonha dos bêbados da cidade. Paulo Mendes Campos viu para depois denunciar o nosso terrível “filme da solidão moderna”. Porque todo poeta é “mensageiro de um mundo vazio”.

Paulo Mendes Campos escreve como quem brinca (“o casamento é uma lenta intervenção cirúrgica que tem o poder de separar duas criaturas cruel e desesperadamente agarradas uma à outra”), mas nesse brincar existe método, coragem e muita, muita disciplina. As descobertas do escritor guardam epifanias cruéis, incisivas, muitas vezes de um óbvio que incomoda tudo que é alma.

Assim, os textos do livro foram organizados em três seções, 28 na seção “De um caderno cinzento”, 16 em “De um caderno”, e nove em “Miscelânea”. Paulo Mendes Campos não tinha nada de bobo. Ciente de suas asas, sabedor de seus atributos e suas qualidades, ele sempre escolheu e sempre tirou o melhor proveito da boa e velha discrição, de um beber solitário pelos bares do mundo. Antes de tudo, e mais importante, o escritor amava o humano, às vezes com mágoa e ressentimento.

Paulo Mendes Campos alcançou seus objetivos. Ele tinha um projeto: o de ser um observador, para só assim intuir a vida. Por isso, talvez, a riqueza, a preciosidade desse rol de mensagens, dicas, por isso tanta beleza nesse falar baixo, nesse verdadeiro conversar entre amigos, entre umas e outras. De um caderno cinzento pode ser muitas coisas, livro de cabeceira, livro de consultas, livro de bar, livro de livrar-se de coisas vãs, livro-lágrima, livro-riso, talismã, oráculo.

“Escritor é aquele que aprende a todo momento de qualquer pessoa.” Cada passagem, cada crônica, cada texto guarda uma espécie de fogo, de luz implícita. Nada é rápido, tudo tem e chega num tempo certo, num tempo exato bom de maturação. Os melhores cronistas têm a alma antiga, velha, capenga, madura de ternuras.

Paulo Mendes Campos era astuto, mas também soube ser bobo, ingênuo, de uma ingenuidade crédula, de acreditar ainda nos homens e na força da literatura e da poesia. Sarcástico, inteligente, profundo, não são poucos os atributos desse que é um dos nosso maiores escritores. Paulo Mendes Campos soube forjar, soube também ser uma espécie de esfinge de si mesmo. Um homem de labirintos, mas labirintos, veja bem, transitáveis, viáveis a ponto de sabe-se lá que tipo de perdição, que tipo de encontro. De um caderno cinzento é uma verdadeira babel.

Meio tristonho? Bardo de bares e boemias? Paulo Mendes Campos era um adivinho, de adivinhar o sumiço das águas, de perceber o findar de tudo que é estrada. Xamã, pajé, filósofo de nadas, Paulo Mendes Campos, figura ímpar, desprovida de números absolutos que o decifre, deixou um legado feito de letras, versos e pensamentos luminosos. Polivalente, homem notável, Paulo Mendes Campos foi, é e será, desde sempre, um poeta: “Todo homem deve libertar-se, todo homem deve realizar um grande gesto, todo homem deve conhecer a profundidade e amargura de seu limite”. Ele nasceu em Belo Horizonte, em 1922, e morreu no Rio de Janeiro, em 1991.

• DE UM CADERNO CINZENTO
De Paulo Mendes Campos
Editora Companhia das Letras
240 páginas
R$ 44,90

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