Fernando Pessoa é homenageado com série de desenhos do artista plástico Alfredo Margarido

Livro reúne 38 quadros de Margarido, acompanhados por fragmentos de textos do poeta português

por Fernando Marques 25/09/2015 09:20
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(foto: Divulgação)
Homenagens não precisam ser sempre sisudas, e esse é o caso da reverência feita pelo escritor e artista plástico português Alfredo Margarido (1928-2010) a Fernando Pessoa (1888-1935), nas aquarelas do livro 'Pintura e poesia'. Trata-se de tributo amorosamente bem-humorado, no qual 38 quadros de Margarido aparecem acompanhados por fragmentos de textos do autor de 'Mensagem'.

Margarido pinta e borda com a figura do poeta, transformando seu rosto muito conhecido em Pessoa-navio, peixe, borboleta, pássaro, conforme sugerem as palavras que ladeiam os quadros. Ao transformá-lo, revela ou ressalta aspectos da obra e da personalidade do escritor, produzindo contrastes irônicos ou líricos entre as aquarelas e os textos que as inspiram.

Margarido valeu-se, por exemplo, de citações do 'Livro do desassossego', que Pessoa assinou como Bernardo Soares, e de trechos do longo poema 'Ode marítima', atribuído a Álvaro de Campos. Bernardo e Álvaro, como se sabe, são heterônimos de Pessoa – personagens criados pelo poeta, com biografia e estilo próprios. Esse é justamente um dos motes mais frequentes das aquarelas, a heteronímia, que envolve a ideia de identidade plural e contraditória.

Um dos textos de Bernardo Soares diz: “Cada um de nós é vários, é muitos (...). Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente”. A imagem que o comenta mostra um tórax com terno e gravata, mas sem cabeça, encimado por seis cabeças de cores diversas (todas com os traços faciais de Pessoa), em linha horizontal, como que pendentes de uma corda. Qual delas usar hoje?

Outra citação toca a mesma tecla: “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não”. Dessa vez, a imagem exibe uma espécie de buquê de rostos, diferentes uns dos outros.

Republicadas pela Editora Unicamp em parceria com a Edusp, as aquarelas foram originalmente expostas em 1988, em Campinas, tendo sido convertidas em livro e então doadas por Margarido à Unicamp. O conjunto de quadros e textos ressurge em 2015, quando se comemora o centenário da revista Orpheu, que inaugurou o modernismo em Portugal, com Fernando Pessoa entre seus mentores. Exposição na Universidade de São Paulo e, agora, a reedição do livro ligam-se às atividades nos 100 anos de Orpheu.

As organizadoras Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli incorporaram três novos ensaios ao volume, escritos por Carlos Felipe Moisés, Helder Macedo e Vilma Arêas. Os artigos que constavam da edição original foram mantidos. Num desses textos, o crítico Arnaldo Saraiva alude carinhosamente aos hábitos etílicos do poeta, ecoando a fala de um amigo de Pessoa que serve de pretexto a uma das aquarelas: “O Fernando bebe aguardente como quem respira”.

O traço de Margarido é hábil, maliciosamente ingênuo, lembra o do cartunista brasileiro Claudius, embora menos ácido. O uso da cor surpreende pela mestria. Carlos Felipe Moisés, autor do ensaio “Ut poesis pictura?” (“Tal como a poesia, assim é a pintura?”), localiza alguns dos principais temas das citações e aquarelas: a consciência dispersa e múltipla; o mar e as viagens mais sonhadas que vividas; o amigo Mário de Sá-Carneiro, companheiro nas aventuras de Orpheu, que surge em trechos de cartas escritas ou recebidas por Pessoa. O poeta Walt Whitman, que o escritor admirava, o trabalho, o dinheiro, o álcool e “o casamento desfeito” de Fernando e Ofélia completam os motes em Pintura e poesia.

Até mesmo o reacionarismo político do poeta, que ele próprio não disfarçou, acha-se ironicamente comentado nas obras. Numa das inscrições a lápis que o artista pôs no canto inferior direito de seus quadros, lê-se: “Fernando Pessoa trabalhando para o capitalismo”. Na imagem, vemos um Pessoa-operário; ao lado, trechos da Ode triunfal, assinada por Álvaro de Campos, entusiasta das máquinas e do progresso técnico... Claro que o poema admite outras leituras, mais sutis. Mas é salutar o modo risonho e sem rapapés com o qual Margarido reverencia o seu Pessoa-personagem.

Fernando Marques
é professor do Departamento de Artes Cênicas da UnB, escritor e compositor. Autor, entre outros, de Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970 (Perspectiva).

Pintura e poesia:   
Fernando Pessoa por Alfredo Margarido
Organização de Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli
Editora Unicamp/Edusp
128 páginas/R$ 50,00

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