Protagonista de 'O padre e a moça', Helena Ignez lembra experiência em Minas

A atriz protagonizou ao lado de Paulo José o primeiro longa-metragem de ficção do cineasta Joaquim Pedro de Andrade. O filme completa 50 anos em 2015

por Silvana Abrantes 11/09/2015 00:13

 

Leo Lara/Universo Produção
A atriz Helena Ignez protagonizou O padre e a moça em 1965 (foto: Leo Lara/Universo Produção)
O padre e a moça é desses filmes difíceis de se imaginar com outro elenco. Quando se assiste ao longa de Joaquim Pedro de Andrade, parece claro que Paulo José “é” o padre, assim como Helena Ignez “é” a moça Mariana, que se apaixona pelo sacerdote.

No entanto, Paulo não foi a primeira escolha de Joaquim Pedro para o papel, e Helena “queria nunca ter feito esse filme; nunca ter feito nem sequer o teste para esse filme”. Quarto longa de sua carreira, O padre e a moça significou para a atriz “o céu e o inferno; bem mais o inferno”, segundo ela diz ao Estado de Minas, numa entrevista em que decidiu “se abrir um pouco mais” sobre o que foi “a violência daquela experiência”.

A parcela de “céu” que a adaptação cinematográfica do poema drummondiano proporcionou a Helena está em seu desempenho notável – a interpretação de Mariana lhe deu o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro –, tão reconhecido como o fato de que sua imagem na tela é de uma beleza singular.

O “inferno” foi vivido durante as filmagens, que se arrastaram por longos três meses, obrigando-a ao convívio com uma equipe em que ela era a única mulher e a atmosfera estava dominada pelo “machismo elevado ao mais alto grau”, conforme ela define.

Arquivo O Cruzeiro/EM.
A atriz Helena Ignez em uma cena do filme 'O padre e a moça', direção de Joaquim Pedro de Andrade (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM.)
“A equipe inteira dava em cima de mim. Todos queriam, literalmente, me comer. Eu tinha 24 anos e uma filha. Estava saindo de um casamento que decidi abandonar. Imagine essa situação de uma menina desquitada. Era para destruir por dentro um ser humano. Foi um convívio horrível com homens naquela situação. Era para eu sair queimada, mas estou aqui.”

As filmagens do longa se estenderam, porque o ator originalmente escolhido pelo diretor para interpretar o protagonista – o artista plástico baiano Luiz Jasmin, morto em 2013, aos 72 anos – foi diagnosticado com hepatite logo que chegou ao vilarejo mineiro de São Gonçalo do Rio das Pedras, locação do filme, e teve que abandonar o projeto para se tratar.

Jasmin e Helena haviam ensaiado seus papéis durante três meses na casa de Joaquim Pedro de Andrade. “Ele (Jasmin) era um pintor bastante bem-sucedido e especialmente bonito, um desses homens que chamavam a atenção pela beleza. Foi escolhido por essa presença física que tinha”, lembra a atriz. Como Jasmin não tinha experiência de intérprete, os ensaios foram intensos. “Ensaiávamos todas as tardes, em média quatro horas por dia”, diz Helena.

Arquivo O Cruzeiro/EM.
Helena Ignez e Paulo José em uma cena de 'O padre e a moça' (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM.)
PARTITURA EMOCIONAL


Quando se viu no local de filmagens e sem o ator principal, o cineasta aceitou a sugestão feita por Helena Ignez e Fauzi Arap para substituí-lo por Paulo José, que ambos conheciam por seu trabalho teatral com o Arena e, segundo disseram ao diretor, era um ator com condições para se apropriar rapidamente do papel e que teria “a dedicação para cobrir toda aquela partitura emocional em pouco tempo”.

No entanto, foi preciso estabelecer um novo período de ensaios antes de iniciarem-se as filmagens. “Houve um tempo para a adaptação do Paulo. Houve uma demora. Aquilo se arrastou, e eu fui ficando com aquele grupo literalmente me devorando”, conta a atriz. Helena tem a impressão de que Paulo José mal se deu conta do desconforto que ela vivia. “Paulo, para mim, é uma pessoa queridíssima. Parece-me que foi tudo natural e normal para ele. Não sei nem se ele chegou a perceber o tipo de situação que, para mim e para Fauzi, teve consequências funestas.” Segundo a atriz, após a experiência com O padre e a moça Arap se sentiu desestimulado a prosseguir no cinema.

Helena está certa de que não foi “a única atriz a passar por essa experiência”, que qualifica ela como própria de “um Brasil arcaico”. E diz “não livrar nem um bocadinho a responsabilidade das mulheres” na prevalência do comportamento machista. “As mulheres nesse período eram tão ou mais machistas que os homens. Fomos nós que criamos essas pessoas.”

Em seu novo filme como diretora, o inédito Ralé, que estreia na próxima edição do Festival do Rio (1º a 14 de outubro), Helena Ignez discute a condição feminina e “esse imaginário feminino um pouco machucado”, à sua maneira. “O filme abre um leque para várias possibilidades. Uma é essa questão feminina e a defesa absoluta da liberdade da mulher por meio do comportamento do que se chama vadia. Uso, inclusive, um trecho filosófico desse abecedário da Marcha das Vadias – Somos todas vadias, somos todas santas, somos todas livres, somos todas fortes. Se vadia é ser livre, somos todas assim.”

Helena Ignez dirigiu os longas Luz nas trevas - A volta do bandido (2010) e Canção de Baal (2007). Em Ralé, ela traz de volta a personagem Sônia Silk, que encarnou em Copacabana mon amour (1970), um dos filmes da Belair, produtora da dupla formada por Julio Bressane e Rogério Sganzerla (1946-2004), que a atriz escolheu para ser seu marido após o fim de sua relação com Glauber Rocha (1939-1981), com quem teve Paloma Rocha. “Sônia Silk transforma-se num personagem xamânico e, no filme, vem comentar esse outro personagem do passado dela”, diz.

Arquivo O Cruzeiro/EM.
Personagem Mariana observa o padre em cena do longa-metragem dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (foto: Arquivo O Cruzeiro/EM.)
AMOR MALDITO


Na trajetória da Mariana de O padre e a moça, Helena enxerga uma mulher “capturada” pela história de “um amor absolutamente maldito e trágico”. Referindo-se ao plano final do filme, ela diz: “A Mariana foi derrotada. Foi queimada. Não vai sair daquela gruta. Não há possibilidade para aquele amor. Acho que ele (Joaquim Pedro) está falando talvez de uma tragédia inevitável do próprio amor”.

Muitos anos depois das filmagens do longa, Helena voltou a se encontrar com Joaquim Pedro de Andrade, a quem sempre considerou, “apesar de tudo, uma das pessoas mais finas do cinema novo”. Na época do reencontro, o diretor já sofria de câncer, e a atriz teve a impressão de se deparar com um homem “que se aprimorou como pessoa durante a vida”. Ele fez “observações muito poéticas sobre o feminino”, conta Helena. Entre suas observações, o cineasta disse que Helena Ignez “transitava entre a santidade e a sensualidade”. “Nesse período, eu tinha dado um basta às minhas atividades artísticas e estava em outra busca profunda, querendo saber e conhecer outras coisas. Ele percebeu essa busca pela santidade”, afirma.

Uma mulher sensual e santa talvez seja o maior dos desafios às ideias e comportamentos de natureza machista. Mas Helena Ignez enfrenta-os desde sempre sem se dobrar, porque, afinal, ela não é uma moça qualquer.

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