Há 35 anos longe das prateleiras, é relançado 'A imaginária', de Adalgisa Nery

Livro é misto de ficção e autobiografia sobre a condição feminina e o machismo imperativo

por Ângela Faria 07/08/2015 11:00
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(foto: Divulgação)
Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Ana Cristina Cesar, Adélia Prado, Ana Maria Machado, Cora Coralina, Marina Colasanti, Nélida Piñon, Pagu e Hilda Hilst – essas autoras sempre são lembradas nas listas de grandes nomes da chamada literatura feminina brasileira. Mas falta alguém aí: a carioca Adalgisa Nery (1905-1980). Praticamente “banida” do universo literário nacional – seus livros sumiram há 35 anos das prateleiras –, sua obra amarga um ostracismo que beira a crueldade, sobretudo quando nos deparamos com o romance 'A imaginária' (1959), relançado agora pela Editora José Olympio.


Pungente, sofrido e sobretudo corajoso, o livro conta a história de Berenice, casada jovenzinha com um brilhante intelectual, viúva aos 20 e poucos anos, com dois filhos para criar e obrigada a enfrentar o Brasil machista, conservador e misógino da primeira metade do século 20. Nem há disfarce. Berenice é mesmo Adalgisa, que ficou viúva aos 29 anos do pintor e poeta Ismael Nery (1900-1934), com quem se casou aos 16. Nery foi uma das inteligências mais luminosas do modernismo brasileiro, amigo e guru de ícones como Murilo Mendes e Manuel Bandeira. Bela, dona de seu nariz e com fama de “difícil”, ela não se curvou ao mundo dos homens. Sua biógrafa, Ana Arruda Callado, chama A imaginária de “livro-vingança”. Também pudera. Consta que Ismael, tuberculoso, abraçava a mulher e sujava seu vestido de sangue durante as hemoptises.


Voltando à ficção: brilhante e narcisista, o marido de Berenice tratava a mulher como mero detalhe. Quando um amigo o questionou a respeito disso, comparou-a à própria mão: “No dia em que ela gangrenar, eu a decepo e continuo a viver com o resto do corpo”. Tuberculoso, o jovem rapaz, à beira da morte, chegou a fazer de Berenice portadora de recados para a amante, casada. A conversa dela, na casa da “outra”, é uma das passagens mais tocantes de A imaginária. “Na minha frente, sobre uma pequena mesa com inúmeros bibelôs de mau gosto, um vaso com rosas irritantemente artificiais. Pareciam repolhos coloridos. Tive a impressão de que as flores se riam do constrangimento da dona da casa.”


A intimidade de Adalgisa/Berenice com a morte chega a ser poética. Os capítulos em que a jovem descreve o calvário do marido são pungentes – “aquele corpo de homem atlético e bem conformado, de linhas vigorosas, murchava aos meus olhos como planta cansada”. A quase viúva descreve, serena: “É terrível assistir aos movimentos lentos que a morte faz sobre um corpo (...) O vácuo só tem realidade concreta no segundo que precede à morte”. Despede-se dele sem xiliques: abre o armário e se abraça às roupas do amor de juventude – “os seus ternos, as suas gravatas, as suas camisas deram-me o consentimento para um carinho com intimidade”. Viúva, “tomada do destemor e da coragem de quem nada possui senão a solidão e a amargura”, liberta-se das chantagens da mãe enlouquecida do marido. Sai de casa com os filhos, vai à luta – isso, na década de 1930, quando mulheres sem marido, quando muito, eram tratadas como “agregadas” nos clãs brasileiros.

VAMPIRISMO Em ensaio escrito em 1988 sobre o romance de Adalgisa Nery, o crítico e poeta Affonso Romano de Sant’Anna lamenta o fato de histórias das letras brasileiras nem sequer mencionarem a autora. Para ele, A imaginária é um texto relevante para a nossa moderna literatura, abordando de forma contundente o vampirismo masculino sobre a alma feminina.


“A imaginária é um romance de formação. Uma estória que ilustra como a sociedade e os homens imprimem na mulher as marcas da dominação e da repressão. E é, por outro lado, a narrativa de como a mulher faz seu doloroso percurso de liberação desse massacre”, afirma Affonso. Oportunamente, o pequeno ensaio é reproduzido na nova edição.


O ostracismo imposto à autora é atribuído ao fato de ela ter se casado com Lourival Fontes, chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda, o temido DIP, que tanto censurou intelectuais e artistas durante a ditadura Getúlio Vargas. A relação durou 14 anos. Adalgisa publicou seu primeiro poema em 1937, lançou vários livros de poesia e ficção, tornou-se jornalista e assinou a coluna “Retrato sem retoque” no jornal Última Hora, com comentários sobre política e economia.

CASSAÇÃO Musa dos pintores – ficaram famosos retratos dela pintados por Ismael e Portinari –, era amiga de Diego Rivera e Frida Kahlo. Elegeu-se deputada pelo Partido Socialista Brasileiro, Partido Trabalhista Brasileiro e Movimento Democrático Brasileiro, mas foi cassada em 1969 pela ditadura militar. Aos 70 anos, internou-se voluntariamente numa clínica geriátrica em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde morreu, em 1980. Três anos antes, havia sofrido um acidente vascular cerebral que a deixou hemiplégica.

A José Olympio promete reeditar o romance Neblina (1972) e os livros de contos Og (1943) e 22 menos 1 (1972), além dos volumes de poesia Poemas (1937), A mulher ausente (1940), Ar do deserto (1943), Cantos de angústia (1948), As fronteiras da quarta dimensão (1952) e Erosão (1973).

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