Cultura negra no Brasil vai da lei à sala de aula

Instituições públicas e particulares têm desafio de tirar do papel da Lei 10.639, que estabelece obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira

por Márcia Maria Cruz 24/07/2015 00:13
A cultura negra passeia pela música, dá tempero à culinária, encanta com a ginga dos movimentos e forja parte da identidade nacional. No entanto, apesar dessa riqueza, ainda está fora dos bancos escolares. As instituições públicas e particulares do Brasil têm o desafio de tirar do papel a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira. A lei determina que, ao longo do ensino fundamental e médio, devem ser trabalhados conteúdos como história da África e dos africanos, a luta dos negros, a cultura negra brasileira e participação do negro na formação da sociedade nacional, dando ênfase na contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política. O tema é abordado no livro Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil,organizado por Cidinha da Silva e lançado recentemente pela Fundação Palmares.

A implementação da lei em todo o país foi foco de pesquisa desenvolvida pelo programa Ações Afirmativas, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e a Unesco. Foram identificadas 36 escolas públicas, sendo duas delas em Minas, que transformam a letra da lei em ação. Não se trata de uma pesquisa censitária, mas um estudo em profundidade de como o conteúdo tem sido absorvido pelas escolas. “Conseguimos um mosaico muito interessante. Conversamos com diretores, professores e estudantes e constatamos avanços e dificuldades de implementação”, pontua o professor da Faculdade de Educação da UFMG (FAE/UFMG) e membro do programa Ações Afirmativas, Rodrigo Ednilson de Jesus.

O pesquisador identificou que não há linearidade na implementação da lei. Em algumas instituições, o peso que a temática tem no currículo altera de um ano para o outro. Em muitos casos, a tarefa é levada a cabo por professores de forma individual. No entanto, a pesquisa demonstra que as experiências mais duradouras são as que contam com envolvimento coletivo – com a participação de professores, diretores, responsáveis pedagógicos e da comunidade onde a escola está inserida.

Rodrigo também constatou que a parceria com a comunidade impulsiona o debate e potencializa a sua inserção na rotina escolar. “As experiências coletivas tendem a se enraizar e ter uma durabilidade maior.” Para que isso ocorra, não basta boa vontade dos docentes, são indicados processos de formação continuada. “Quem tem uma leitura sólida e participa de formação continuada tende a potencializar o trabalho”, avalia Rodrigo. É o caso da professora Luciângela Amanda Reis, que cursou a especialização Diversidade, educação, relações étnico-raciais e de gênero na FAE/UFMG no ano passado. Depois de se capacitar, ela conseguiu desenvolver o projeto para uma feira de cultura afro-brasileira e, neste ano, articula com colegas para que a discussão seja integrada ao currículo da Escola Municipal Prefeito Souza Lima, no Bairro Jardim Vitória, na Região Nordeste de Belo Horizonte. “Tento mobilizar e envolver outros colegas. A escola é bem receptiva para acolher o que a gente propõe. Queremos que a temática não seja discutida apenas em datas específicas e em alguns eventos”, diz.

A maneira como as escolas se apropriam da discussão também é bastante variada, vai desde a introdução da disciplina de história e cultura da África no currículo até o desenvolvimento de projetos interdisciplinares, passando pela realização de oficinas com grupos de manifestações culturais como o congado e a capoeira. “Algumas escolas infantis fazem contação de histórias, que têm como protagonistas personagens negros”, relata Rodrigo. Depois de identificar essas experiências, ele reforça que o próximo passo será dar visibilidade a elas para que outras escolas possam tê-las como referência de trabalho.

A luta do movimento negro e de muitos professores é para que o conteúdo seja incorporado ao currículo. É o que tenta o professor de história Juvenal Lima Gomes, que leciona na rede pública e privada de Belo Horizonte. Ele procura criar relações com temas atuais e presentes no cotidiano dos alunos. “Procuro dar outro viés para questões relacionadas ao candomblé, por exemplo. Trabalho o samba e outras manifestações culturais. Também procuro refletir como a questão racial está implicada na discussão da redução da maioridade penal.”

Um dos autores de Africanidades, o professor de literatura brasileira e teoria da literatura da Universidade Federal de Viçosa (UFV) Adélcio de Sousa Cruz defende que a história da África e a cultura afro-brasileira deve ser incluída no currículo dos cursos de licenciatura. “Infelizmente, a Lei 10.639 é ignorada pela maioria das escolas”, diz. Embora Machado de Assis seja um dos autores mais conhecidos da literatura brasileira, Adélcio lembra que outros autores negros precisam ser mais bem trabalhados.

O professor procura dar visibilidade às obras de autores como Maria Firmina dos Reis, negra que é considerada a primeira romancista brasileira. Também trabalha com diversos autores do século 20: Lima Barreto, Lino Guedes, Aloísio Rezende, Solano Trindade, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus. Entre os autores contemporâneos, Adão Ventura, Ney Lopes, Conceição Evaristo, Waldemar Eusébio Pereira, Ana Maria Gonçalves, Allan da Rosa e Cidinha da Silva. Uma excelente coletânea de escritores negros brasileiros foi organizada pelos professores Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca para suprir essa lacuna. A obra de quatro volumes, lançada pela Editora UFMG, está esgotada e merece uma nova reedição, pois deveria constar em todas as bibliotecas do país.

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