Leitura, Estado e racismo

por 24/07/2015 00:13

Anelito de Oliveira


Subalternos em geral temos um grande fascínio pelo livro, porque sabemos, a partir de referenciais diversos, que tudo que vivenciamos socialmente, sobretudo as agruras, tem a ver com a centralidade do “graphos”, do escrito, na sociedade, não só em termos ocidentais, como se acreditou durante muito tempo, mas também orientais.

A questão da dominação passa objetivamente pela questão do livro, que não é uma questão superestrutural, como é percebida em clave submarxista e enunciada pelos dominadores, mas sim estrutural, implicando, em primeiro lugar, processo educacional, a escolarização, e, num ponto mais agudo, o que Antonio Candido formulou como “direito à literatura”.

Este Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil, publicação da Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura, organizada pela escritora mineira Cidinha da Silva, é uma excelente contribuição ao enfrentamento da questão do livro em sua relação com o racismo contra negros no Brasil. Trata-se de trabalho com viés instrumental, voltado, como está agressivamente claro, ao embasamento de ações governamentais, induzindo a compreensão de que o governo federal  está interessado em dialogar com os beneficiários de suas políticas públicas – bom sinal, claro.

Com textos produzidos por pesquisadores acadêmicos de ciências humanas, sociais, letras e artes, escritores, editores, artistas, educadores sociais e gestores públicos, entre outros, o volume procura abarcar desde questões conceituais até a organização de bibliotecas comunitárias em favelas, passando por questões  como diversidade sexual,  currículo escolar, formação de leitor, cânone literário e prática de leitura em presídio, tudo enredado pelo racismo.

Os muitos textos e o número expressivo de autores, resultando naturalmente numa considerável quantidade de páginas, são índices da ambição da obra. Boa ambição, sem dúvida, que nos sugere – e a sugestão se confirma – o  quanto o objeto da obra (a relação entre livro e racismo) constitui um interdito, no sentido foucaultiano, na relação entre letrados negros e Estado no Brasil, uma situação conflituosa.

Dados altamente qualitativos ressaltam-se nesse trabalho, que, desde já, passa a ser referência para a abordagem categórica, para além dos improvisos comuns praticados pelos institucionais, do livro como questão social de suma importância para o combate eficaz ao racismo contra negros no país.

Destacar uns nomes em meio a tantos que assinam textos significativos, a começar pela organizadora, é meio constrangedor, mas faz-se necessário: o professor e ensaísta Eduardo de Assis Duarte (UFMG), a editora Maria Mazzarelo (Mazza Edições), o poeta e crítico gaúcho Ronald Augusto e a professora Regina Dalcastagnè (UnB) são alguns dos importantes colaboradores do livro. Também deve ser ressaltada a contribuição do sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva e da antropóloga Érica Peçanha do Nascimento na problematização da relação entre literatura, periferia e Estado, bem como da historiadora mineira Josemeire Alves Pereira com um comovente relato sobre a resistência da identidade negra, com seus valores culturais próprios, no Aglomerado Barragem do Santa Lúcia, em BH.

Como é comum em obras que se pretendem abrangentes, há elementos de ordem quantitativa que, sem comprometer a qualidade geral do trabalho, não deixam de chamar a atenção, sinalizando para a dificuldade – previsível, claro – de mapeamento rigoroso de qualquer campo.

O principal desses elementos é, digamos, de base territorial:  a maioria dos autores está situada no Sudeste, especialmente no famigerado eixo triádico São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.  Em função disso, os pontos de vista, os “estudos de caso”, expressam muito de uma cultura local que diferem de outras culturas locais num país continental.

Se é inegável que, do ponto de vista político, o racismo é questão internacional, imbricada no projeto de Estado-nação que nos foi imposto como parte da dinâmica de modernização operada pelas grandes potências europeias até os recentes séculos 20 e 19, também é inegável que sua complexidade maior se apresenta nas localidades, nas regiões, nas cidades, nos territórios, no face a face cotidiano, material.

Nesse sentido,  Africanidades e relações raciais, que se anuncia positivamente como parte de um trabalho ainda em curso, que completar-se-á com a disponibilização no site da Fundação Palmares de dados hauridos em consulta pública sobre o tema LLLB (Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas), suscita, sobretudo, o interesse sobre a relação entre economia do livro e problemática racial no Norte, no Sul, no Nordeste e no Centro-Oeste do país, além das tantas especificidades da questão no próprio Sudeste. Belo começo.

. Anelito de Oliveira é mineiro de Bocaiúva (1970),pós-doutor  e pesquisador no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Foi editor do Suplemento Literário de Minas Gerais entre 1999 e 2003. Autor de vários livros de criação e crítica, entre os quais A aurora das dobras: introdução à barroquidade poética de Affonso Ávila (Inmensa, 2013), e Mais que o fogo (Orobó Edições, 2012).

 

As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil:
120 anos após a abolição

De Mário Theodoro (org.). Ipea, 2008. Disponível em www.ipea.gov.br/portal/images/stories/Livro_desigualdadesraciais.pdf

Literatura e afrodescendência no Brasil – Antologia crítica (4 vol.)
De Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca (orgs.).
Editora UFMG, 2011 (esgotado).

Um programa em defesa da bibliodiversidade
De Cristina Warth e Eliana Sá. 2010. Disponível em: www.libre.org.br/artigo/16/um-programa-em-defesa-da-bibliodiversidade.

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