Mestre das tesouras

O jornalista Gustavo Camargo conta a história de José de Cicco, que fez fama como 'alfaiate dos presidentes' e lançou o fraque curto

por 27/06/2015 00:13
Flávio Damm/Arquivo O Cruzeiro/ EM
Flávio Damm/Arquivo O Cruzeiro/ EM (foto: Flávio Damm/Arquivo O Cruzeiro/ EM)
Ângela Faria



A feroz rivalidade entre Getúlio Vargas e Carlos Lacerda acabou em morte – em agosto de 1954, o presidente da República se suicidou com um tiro no coração para não se render ao cerco político articulado pelo adversário udenista. Mas esses dois inimigos tinham algo em comum: o apreço pelos ternos confeccionados por José de Cicco, alfaiate italiano radicado no Rio de Janeiro. Aliás, o trio bem sabia: imagem é poder.

Artesão caprichoso, fiel à alfaiataria europeia e instalado em Copacabana, De Cicco vestiu políticos como Getúlio, Lacerda e Juscelino Kubitschek; artistas como o cineasta Humberto Mauro; comunistas como o jornalista e treinador de futebol João Saldanha; craques da bola como o elegantíssimo mineiro Heleno de Freitas; empresários como Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados, e o banqueiro Walther Moreira Salles. Além, claro, de colunáveis como o príncipe Ali Khan, casado com a estrela Rita Hayworth.

A trajetória do talentoso italiano é relembrada pelo jornalista Gustavo Camargo no livro Um alfaiate no Palácio do Catete – História de José de Cicco, o mestre das tesouras no país dos elegantes (Estação das Letras e Cores), lançado este mês. Não se trata de uma biografia convencional: o autor “dialoga” com o personagem, “viaja” em papos com ele, permite-se tirar conclusões sobre fatos relacionados à sua trajetória. O formato é um risco – em certos momentos, pulamos as páginas em busca do De Cicco real. Por outro lado, foi oportuna a opção de contar ao leitor um pouco da história dos alfaiates no Brasil.

GÊNOVA


Discreto, uma espécie de “psicólogo” de seus famosos clientes, o nosso protagonista foi moço pobre. Em 1924, chegou à capital brasileira com apenas uma mala, vindo de Gênova a bordo do transatlântico Tommaso di Savoia. Trabalhou duro no Rio de Janeiro. De Cicco começou consertando roupas, arriscou abrir o próprio ateliê e, a princípio, ganhava apenas para o aluguel. Encontrou no mulato pernambucano José Benedito das Mercês o braço direito de toda a vida.

Quando morreu Nagib David, o papa dos ternos, o imigrante italiano se tornou o número um do Brasil. De Cicco, aliás, não era apenas o “alfaiate dos presidentes”. Sabia se projetar. Consultor de moda masculina de jornais e revistas cariocas. Aconselhava o magro a usar paletó com três botões, recomendava ao gordo dois botões apenas, ensinando que a dupla conferia a ilusão de magreza. Defensor do terno marrom, comprou briga com Danusa Leão, ex-top model e então mulher do jornalista Samuel Wainer, quando a bela tachou os brasileiros de deselegantes, “totalmente despidos de gosto no vestir”.

CAREIRO

O mundo das tesouras, todo mundo sabe, tem lá suas alfinetadas. Em 1952, De Cicco deixou de ser o preferido de Getúlio Vargas, que o trocara por outro italiano, o alfaiate Luigi Trota. Notas ferinas em colunas sociais informaram que o motivo se devia ao preço cobrado por De Cicco, considerado “careiro”. Mas Gustavo Camargo garante: a culpa foi de Roberto Alves, secretário particular de Getúlio, contrariado com a recusa de uma encomenda de última hora.

Anos depois, De Cicco comentou o imbróglio, chamou o fofoqueiro Alves de indelicado e arrogante. E disparou: o ex-secretário de Getúlio havia se esquecido de quem realmente era. “Um simples lavador de banheiras em Itu”, resumiu. Quanto à pecha de careiro, fez as contas. “Um vestido de noite, para ser usado no máximo três vezes, custa o dobro de uma casaca, que exige o triplo do trabalho, material de alto custo e será usada pelo resto da vida.”

Morto Getúlio, De Cicco se tornou uma espécie de celebridade fashion. Viu-se metido em intrigas de jornal com o famoso conterrâneo Angelo Litrico (1927-1986), em visita ao Rio de Janeiro, enfrentou a pirataria (um ex-auxiliar chamado Francisco criou a marca De Chico) e caiu na boca do povo ao ser flagrado frequentando o clube nudista criado por Luz del Fuego na Ilha do Sol, na Baía de Guanabara. O italiano, respeitável pai de família, tinha um fraco por moças bonitas e pelo jogo.

De Cicco se tornou também queridinho das elegantes. A primeira-dama mineira Sara Kubitschek era fã de seus terninhos. A atriz portuguesa Eunice Colbert e a bailarina Tatiana Leskova frequentavam o famoso ateliê em Copacabana.

Gustavo Camargo conta que o italiano, craque em modelagem, não sabia desenhar. “Seu grande sucesso foi adaptar a moda inglesa para o Brasil, utilizando tecidos mais leves”, informa. “Seu produto mais famoso foi o jaquetão e sua revolução poderia se resumir em uma sentença: ternos justos, flexíveis, leves e sem enchimento, de acordo com nosso clima”.

Ousado, De Cicco inventou o fraque curto, motivo de espanto entre os colegas. E o fez em grande estilo: o “modelo” foi ninguém menos que o colunista social Ibrahim Sued, em 1958, ao se casar com a mineira Glorinha Drummond. Sem cauda, o “primo” brasileiro do tradicional traje inglês é usado até hoje.

José de Cicco morreu em 1971, aos 65 anos, vítima de edema pulmonar. A Casa De Cicco, porém, resistiu bravamente ao declínio da alfaiataria artesanal e à invasão das chamadas lojas de roupas prontas. Só fechou as portas em 1994, quando faleceu o contramestre Lourenço Caloiaro, que o próprio dono do negócio designara como seu sucessor.

UM ALFAIATE NO PALÁCIO DO CATETE
. Histórias de José de Cicco, o mestre das tesouras no país dos elegantes
. De Gustavo Camargo
. Estação das Letras e Cores
. 149 páginas, R$ 42

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