Direito adquirido

Livro do antropólogo Romeu Sabará sobre os Arturos defende a urgência de contemplar as comunidades rurais negras com a reforma agrária. Para ele, é secundário defini-las como quilombos

por 13/06/2015 00:13
Marcelo Sant%u2019Anna/EM/D.A Press - 9/5/04
Marcelo Sant%u2019Anna/EM/D.A Press - 9/5/04 (foto: Marcelo Sant%u2019Anna/EM/D.A Press - 9/5/04)
Walter Sebastião



O livro O drama do campesinato negro no Brasil – A comunidade negra dos Arturos (Editora ICEC) traz a tese de doutorado apresentada pelo mineiro Romeu Sabará, de 73 anos, no Programa de Pós-graduação de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP). Defendida há 18 anos,  permaneceu inédita até agora. Trata-se de um trabalho pioneiro sobre a comunidade de afrodescendentes sediada em Contagem, na Grande Belo Horizonte, elaborado numa época em que, segundo o autor, havia pouco interesse de pesquisadores sobre o mundo rural. Com estudo de caso, o antropólogo analisa a situação de camponeses transformados em proletários urbanos.

O texto foi publicado na íntegra e Romeu Sabará argumenta que o tema “continua atualíssimo”. Ele acrescentou o capítulo introdutório “Comunidades negras rurais, quilombos e guetos negros” para contextualizar a questão em nossa época, “quando se discute a ressemantização dos quilombos”.

Sabará explica: “A questão não é ficar procurando resíduos de quilombos, pois vamos acabar achando-os dentro de nossas casas. O importante é discutir a reforma agrária que contemple as comunidades negras. Com o fim da escravidão, os negros ficaram sem terras e assim continuam até hoje. Falta terra para os negros, inclusive na roça”.

Sabará promete explicação mais detalhada da história acidentada da pesquisa que deu origem ao livro recém-lançado no volume que vai levar o nome de Memórias de um antropólogo da UFMG.

Como o senhor conheceu a comunidade dos Arturos?

Minha chegada aos Arturos se deu em junho de 1969, quando, casualmente, fora à cidade de Contagem para iniciar o meu projeto de pesquisa sobre o congado mineiro como professor de folclore na Escola de Cinema da PUC Minas. Era então um jovem antropólogo em início de carreira. Tomei um ônibus em Belo Horizonte e fui procurar congadeiros. Alguém me indicou um senhor idoso, branco, que era camponês. Fui me encontrar com ele em sua horta, na beira da cidade. Ele sempre participava do congado como fiscal. Depois, vim a saber que esse era um cargo de quem tinha de manter a ordem e ajudar nos desfiles, com seus reinados de congos andando e dançando pelas estradas e ruas nos dias de festa. Gentilmente, ele me levou a uma roça, um sítio em Contagem. Fomos a pé, cerca de três quilômetros, pois o ônibus não ia até lá.

Como o senhor encontrou os Arturos no fim dos anos 1960?

Foi uma surpresa. Encontrara uma comunidade negra rural semi-isolada naquele pequeno sítio, com a casa central do falecido Artur Camilo e de sua viúva, dona Carmela, rodeada por cerca de 10 residências dos filhos do falecido e da mulher. Eram camponeses ignorados pela sociedade local. Tratados como negros pobres e atrasados que praticavam o congado, dançantes de umas danças dadas como ridículas, o que era tido como vergonhoso para a imagem da cidade, tratada como “Contagem das Abóboras”. É o que abordo na primeira parte do livro, “A comunidade negra dos Arturos e a sociedade envolvente”. Quando lá cheguei, eles não conheciam Belo Horizonte, não tinham eletrodomésticos nem luz elétrica. A iluminação era à base de lamparina de querosene. Viviam franciscanamente em comunidade, conhecidos como os negros do Artur Camilo. Do meu interesse pelo congado de Contagem passei a ter interesse em estudar essa comunidade. Passei a conviver com eles, amiúde, por quase 30 anos, de 1969 a 1997, até quando defendi minha tese de doutorado sobre eles. Tese essa publicada agora em livro, quase 20 anos depois de defendida. Digo amiúde porque, durante esse tempo, passei a pesquisar outras comunidades negras rurais de Minas Gerais e outros congados. Queria compreender esses dois fenômenos em Minas Gerais como fenômenos socioculturais afro-mineiros.

Como era Contagem naquela época?

A cidade estava longe de ser a Grande Contagem de hoje, com seu crescimento industrial e demográfico, volumosas arrecadações de ICMS e expressivo potencial eleitoral. Ainda que fosse sede de município, era um tanto quanto rural e interiorana, socialmente isolada do seu parque industrial, mais conhecido como Cidade Industrial, com grandes bairros operários, como Eldorado e JK. Não existia ainda o Centro Industrial de Contagem, o Cinco, que crescia em direção à sede, mas era, na verdade, um distrito. Encontrei ali uma pacata cidade interiorana ligada à comarca de Betim, de casas modestas e alguns casarões como a Igreja Matriz de São Gonçalo em uma praça, e a barroca Igreja de Nossa Senhora do Rosário em outra praça. Contagem era dependente da comarca de Betim. Sua vida política girava em torno das famílias Camargos e Diniz

Por que o título de seu livro remete ao campesinato negro no Brasil?

Por várias razões. A primeira delas é porque me propus a documentar e analisar a comunidade negra dos Arturos como expressão de uma forma de campesinato no Brasil que foi ignorada, em termos de política agrária, tanto pelo meio acadêmico-científico das ciências sociais quanto pelo governo. Esse campesinato emergiu no país com a extinção da escravatura, sobrevivendo até os dias de hoje sob uma forma peculiar: as comunidades negras rurais. Muitas delas são consideradas remanescentes de quilombos, mas nem sempre o são. A outra razão é porque me propus a denunciar o processo de esbulho da comunidade como produtora de ritos e símbolos afro-brasileiros para si em produtora desses ritos e símbolos para o mercado cultural, principalmente ao celebrarem a Festa do 13 de Maio como festa da libertação dos escravos. Isso é tratado no capítulo relativo ao mercado de bens simbólicos. A terceira razão é porque consegui documentar e analisar um rito agrário em extinção – a festa de primeira capina de milho, com seu legendário Juão-do-Mato. A festa está vinculada a um processo de trabalho rural: os mutirões de primeira capina de milho. Trata-se da representação dramática do próprio drama do campesinato negro. É um drama popular, afro-brasileiro, de fazer inveja a qualquer dramaturgo por sua beleza coreográfica e riqueza simbólica.

O que já se sabe sobre os Arturos e o que vale a pena conhecer?

Nisso o meu livro difere totalmente de quase tudo o que vem sendo escrito sobre eles. Esses escritos estão mais voltados para tratar do congado na comunidade. Meu trabalho, ao contrário, centra-se no estudo da comunidade em si, inclusive adiei meu trabalho de sistematização sobre o congado em Contagem para outra oportunidade. Para mim, o estudo dos Arturos como comunidade negra rural se esgotou com a publicação e outras mais. Poderia ser interessante verificar as mudanças que vêm ocorrendo, delineando o seu futuro. Quanto ao congado de Contagem e à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, esgotou-se a minha necessidade de fazer trabalho de campo, mas resta a tarefa de sistematizar esse material e publicá-lo. Não sei se terei condições de concluir essa tarefa. A comunidade e o congado estão sendo de tal forma assediados por pesquisadores, agentes da mídia, pseudopesquisadores e curiosos que me parece mais interessante dar continuidade a essa questão do assédio, mais além do que já tratara. Isso é abordado na quarta e última parte do livro, “A comunidade negra rural dos Arturos e o mercado de bens simbólicos”.

Como o senhor vê a situação atual das comunidades negras rurais?

Entendo que meu livro defende algumas teses que podem ser importantes. Uma delas é propor que o governo, em vez de se preocupar em identificar essa ou aquela comunidade negra rural como quilombola ou remanescente de quilombo para demarcar terras, deveria implementar um projeto de reforma agrária voltado para comunidades negras rurais em geral, à semelhança do kibutz de Israel. Tenho para mim que o movimento quilombista de romantização do termo quilombo contribui negativamente para desestimular a proposta de reforma agrária para os negros.

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