Ecos de Orpheu

O pesquisador Ricardo Vasconcelos fala sobre o impacto que a revista criada pelos poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro provocou no modernismo português

por 13/06/2015 00:13
imagens: Almada Negreiros/reprodução
imagens: Almada Negreiros/reprodução (foto: imagens: Almada Negreiros/reprodução)
Severino Francisco






Há 100 anos, a revista Orpheu, editada pela dupla de poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, provocava escândalo em Portugal, implodindo a rigidez clássica com estocadas de experimentações de linguagem e de humor. O jornal A Capital classificou o primeiro número da publicação de “litteratura de manicomio”. Pessoa e Sá-Carneiro pegaram a deixa: incorporaram o personagem de um certo Ângelo de Lima, típico caso de alienação mental, como colaborador de Orpheu.

Montanhas de estudos já foram publicados sobre as relações de Pessoa e de Sá-Carneiro com as vanguardas, mas Ricardo Vasconcelos, professor da Universidade de San Diego (EUA), explorou vertentes desconhecidas em suas pesquisas sobre a correspondência entre os dois escritores. Ele é autor de ensaios sobre os ecos cubistas na poesia de Sá-Carneiro e sobre o conceito de pertencimento a uma semiperiferia que se observa em sua obra. Nesta entrevista, ele fala sobre o impacto da revista, a influência exercida pelas vanguardas europeias sobre os portugueses e as diferenças entre os modernismos português e brasileiro.



Qual o impacto do contato de Mário de Sá-Carneiro com a vanguarda europeia a partir de Paris? É possível afirmar que Pessoa foi mais marcado pela influência inglesa e Sá-Carneiro pela francesa?

Ambos são diretamente influenciados pelos movimentos de vanguarda. Note-se que Sá-Carneiro e Pessoa acompanhavam os principais movimentos literários franceses e ingleses, mesmo a partir de Lisboa. Contudo, a imersão de Sá-Carneiro em Paris, desde o outono de 1912, leva-o a conhecer melhor o cubismo, aparentemente pela mão do pintor Guilherme de Santa Rita. Esse estilo artístico, que em meia dúzia de anos tinha tomado a capital francesa de surpresa, suscita-lhe diferentes reações. As cartas enviadas a Pessoa mostram, logo no outono de 1912, as suas reticências iniciais, seguidas, três meses depois, de uma declarada defesa do potencial desse estilo e, especificamente, de Picasso. Já no verão de 1915, quando Sá-Carneiro regressa a Paris pela última vez, depois do lançamento dos dois números de Orpheu, o poeta expressa a Pessoa, com algum sarcasmo, a surpresa em relação ao fato de os cubistas terem adotado o conflito bélico como tema. O conhecimento mais direto de Sá-Carneiro em relação ao cubismo e ao futurismo é confirmado por sua referência a visitas à galeria do marchand Clovis Sagot. Por sua vez, Pessoa, em seus escritos, teoriza vagamente sobre os dois movimentos, referindo-se a ambos quase sempre de forma indiferenciada e evidenciando pouca adesão. Mas nem por isso esses movimentos deixam de influenciá-lo. Tal é visível no discurso mais vanguardista de Álvaro de Campos, mas, além disso, essa influência é perceptível na concepção dos diferentes ismos pessoanos e nomeadamente do próprio interseccionismo: Pessoa considera o cubismo como uma intersecção de objetos no seu lado físico, o que o leva a conceber a representação de cruzamentos de objetos com ideias abstratas.

Qual é a singularidade do modernismo português? Como ele se diferencia, por exemplo, do modernismo brasileiro?

O modernismo português estava investido em afirmar a literatura portuguesa no contexto europeu e, ao mesmo tempo, sem contradição, em europeizá-la. A trajetória dos projetos de revistas de Pessoa é a esse respeito esclarecedora, já que ele pensa primeiro em publicar Lusitânia – para contrastar as virtudes da literatura nacional – e pouco tempo depois já projeta Europa. Por outro lado, Orpheu queria administrar um eletrochoque até do ponto de vista moral ao meio literário e à sociedade portuguesa. O modernismo brasileiro, em contrapartida, esforça-se sobretudo por promover a independência cultural e linguística dos autores e dos falantes brasileiros, 100 anos depois da independência nacional. Procurava-se a demonstração de uma natureza intrinsecamente brasileira na produção nacional. Daí que se convoquem grandes arquétipos brasileiros, como as figuras do indígena e da antropofagia, mais como metáforas do que como objetos de estudo antropológico. E daí também a importância que Mário de Andrade dá à língua nacional, o português tal como falado no Brasil e ainda um português possível, que integrasse os vários vocabulários nacionais.

E quais os pontos de afinidade?

É possível lembrar a origem luso-brasileira da revista Orpheu, que no fim de contas teve pouco relevo, e o próprio fato de os dois modernismos se apropriarem de vocabulários herdados das vanguardas, nas formas e no gesto iconoclasta. Mas penso, sobretudo, que ambos os movimentos partilhavam a consciência de uma modernidade política, econômica, técnica, bastante incompleta, decorrente da posição semiperiférica que o espaço de língua portuguesa ocupava na ordem mundial. Os autores modernistas percebiam empiricamente que essa era uma posição que o próprio falante da língua portuguesa não deixava de carregar.

Como avaliar o impacto da revista Orpheu para o modernismo português? Por que ela foi tão importante naquele momento?

Esse impacto é mensurável na enorme recepção na imprensa da época, bastante maior do que a de qualquer publicação atual. São largas dezenas as resenhas de Orpheu, publicadas por todo o país, além dos jornais de maior circulação de Lisboa e do Porto. Para essa atenção convergiram razões internas e externas ao formato da revista. Portugal e a Europa viviam um momento altamente conturbado. Passava-se um ano desde o começo da Primeira Guerra Mundial. A república portuguesa tinha sido declarada em outubro de 1910 e os governos eram altamente instáveis. Em 1915, no ápice do impacto de Orpheu, Pessoa ataca diretamente o político Afonso Costa, que sofrera um acidente, e suscita tal indignação pública que os outros autores da revista sentem que têm de se demarcar. Orpheu, por sua vez, obedecia ao desejo de causar surpresa e mistificação. Adotou por isso uma estética da blague, comum em Paris mas invulgar no Portugal de então. Assim, as escassas críticas benevolentes dividiram-se entre reconhecer o mérito literário da revista ou simplesmente reduzi-la a uma blague. As mais negativas encontraram em Orpheu uma “litteratura de manicomio” (título do jornal lisboeta A Capital, de 30 março de 1915). Pessoa e Sá-Carneiro aproveitaram para radicalizar o discurso literário mais vanguardista e trazer para Orpheu o poeta Ângelo de Lima, um reconhecido caso mental, de modo a tornar a blague mais perfeita. Com esses objetivos atingidos, certificaram-se de que recolhiam todos os recortes de imprensa para memória póstuma!

Que leitura o senhor faria de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro na perspectiva do mundo pós-moderno? Eles eram autores modernos que já anteviam a crise do moderno e apontavam para o estilhaçamento de valores pós-modernos?

Esses conceitos foram se revestindo de camadas de significado e, no caso do pós-moderno, de bastante ambiguidade. Pessoa é talvez o exemplo mais extremo da fragmentação do sujeito moderno, que, no seu caso, contribui para engendrar os heterônimos. Os dois autores são também modernos pela sua tentativa de serem absolutamente originais, e pela sua aproximação à linguagem das vanguardas, que enaltecia a velocidade e a comunicação, e, a outro nível, o verso livre e até as palavras livres. Como todos os bons poetas, no entanto, a sua modernidade advém sobretudo da capacidade de renovar a língua, que nos leva a lê-los ainda hoje com surpresa. Por seu turno, Sá-Carneiro necessitava de estar imerso no desenvolvimento de Paris e de apresentá-lo na sua obra. Buscava a proximidade da modernidade técnica, cujo maior emblema era a Torre Eiffel. Sobre a atualidade da obra nos dias de hoje, contudo, recordo aqui que em 31 de agosto de 1915, Sá-Carneiro escrevia numa carta a Pessoa, com total originalidade, o seguinte poema: “A minh’ Alma fugiu pela Torre Eiffel acima,/ A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões/ Fugiu, mas foi apanhada pela antena da T.S.F./ Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas... (Em todo o caso que belo fim para a minha Alma...!)”. Escrevendo há 100 anos, e inspirando-se nos cabos de transmissão TSF que pendiam da torre, na sua representação eufórica de um indivíduo absorvido e disseminado pela comunicação de massas, estaria Mário de Sá-Carneiro assim tão longe de nossa euforia com a adesão do nosso inconsciente à internet, via smartphone?

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