Stephen King compartilha visão sobre seu ofício em 'Sobre a escrita - A arte em memórias'

Não se assuste: o mestre do terror tem muito a dizer sobre suas criações e, mais importante, sobre o fazer literário

por Carlos Marcelo 06/06/2015 12:57
Arte EM
(foto: Arte EM)
Stephen King no Pensar. Tomou um susto? Já se recuperou? Então, vamos lá:  um dos mais populares escritores contemporâneos não só está na capa do caderno como o motivo nada tem a ver com monstros, fantasmas, bruxas e outras criações do norte-americano. Acaba de chegar ao Brasil 'Sobre a escrita – A arte em memórias', livro no qual o escritor de 67 anos compartilha, de forma pragmática, a visão sobre o ofício que o fez se tornar conhecido como o mestre do terror –  e, justamente por isso, é alvo de ataques, ou simplesmente de indiferença, pela intelligentsia acadêmica. Quem superar o preconceito vai se deparar com um trabalho surpreendente e bem- humorado, ocasionalmente autodepreciativo ("Imaginei que, quanto mais reduzido o livro, menos baboseira teria") e, acima de tudo, coerente com a trajetória do escritor: as histórias vêm sempre antes da teoria.

O incômodo de Stephen King com a sua condição de sucesso-de-público-fracasso-de-crítica está explicitado na introdução de 'Sobre a escrita', ao se posicionar como um operário da palavra: "Ninguém jamais pergunta sobre linguagem a um escritor com o meu perfil. Esse tipo de pergunta é feito a um (Don) DeLillo, um (John) Updike, um (William) Styron, mas não a romancistas populares. Ainda assim, muitos de nós, proletários, humildemente nos preocupamos com a linguagem, e temos extremo cuidado e paixão pela arte e ofício de contar histórias no papel".

O que moveu King na direção de um livro pontuado por exemplos pessoais (apesar de ele assegurar que Sobre a escrita não é uma autobiografia) foi o desejo de mostrar a formação de um escritor – no caso, a própria formação – para encorajar (ou desanimar, depende da convicção de cada um) os que começam. "Acredito que muitas pessoas têm algum talento para contar histórias, e esse talento pode ser fortalecido e afiado. Foi assim que aconteceu comigo, e nada mais – um processo desconjuntado de crescimento, em que ambição, desejo, sorte e um pouco de talento tiveram seu quinhão", analisa, em tentativa mal-disfarçada de modéstia.

Enquanto enfileira certezas, Stephen King abre a porta de casa e nos permite enxergar alguns dos fantasmas que o assombram. Expõe, sem rodeios, o vício em cocaína nos anos 1980 ("Em meados de 1986, escrevi Os estranhos, trabalhando até meia-noite com o coração a 130 batimentos por minuto e cotonetes enfiados no nariz para estancar o sangramento causado pela cocaína") e, mais detalhadamente, a dependência do álcool. Ele conta que escreveu O iluminado sem perceber que estava escrevendo sobre si mesmo e narra as tentativas de ludibriar a si mesmo e a família sobre o consumo exagerado de bebida: "Alcoólatras constroem defesas como holandeses constroem diques".

Os fãs vão se regalar com a reconstituição detalhada do processo de criação do primeiro best-seller, Carrie ("Dois fatos sem qualquer relação, crueldade adolescente e telecinesia, se uniram, tive uma ideia e achei que era o início de uma boa história"), e surpreende ao revelar que enxergava problemas sérios na história – o maior deles, o fato de não gostar muito da personagem principal: "Carrie White parecia obtusa e passiva, uma vítima pronta". Sua impressão o levou a concluir: "A percepção original do escritor sobre um personagem pode ser tão equivocada quanto a do leitor (…) Nunca gostei de Carrie, a versão feminina de Eric Harris e Dylan Klebold – os adolescentes responsáveis pelo massacre de Columbine –, mas ao menos consegui entendê-la um pouco, tenho pena dela e também de seus colegas, porque muito tempo atrás também fui um deles".

As 250 páginas, contudo, são destinadas primordialmente para o detalhamento da atividade literária de Stephen King. Conta que aprendeu a aprimorar descrições a partir da leitura de expoentes do romance policial norte-americano: Raymond Chandler, Dashiel Hammett, Ross McDonald. Elogia a habilidade para diálogos de Elmore Leonard e professa sua fé na leitura como item fundamental na formação de um escritor. "Não leio com o objetivo de estudar o ofício, e sim porque gosto de ler, gosto de histórias. Ainda assim, há um processo de aprendizado em curso. Cada livro que se pega para ler tem uma ou várias lições e geralmente os livros ruins têm mais a ensinar do que os bons", acredita King. Ele conta que costuma ler de 70 a 80 livros por ano, a maioria de ficção – entre eles obras cultuadas, como 2666, de Roberto Bolaño, As horas, de Michael Cunningham, As correções, de Jonathan Franzen, Reparação, de Ian McEwan, e também a série Harry Potter e o clássico Guerra e paz, de Tolstói.

King revela que, em média, escreve dez páginas por dia, sete dias por semana, até chegar à primeira versão de um romance. "Não paro e não diminuo o ritmo porque, quando não escrevo todos os dias, os personagens começam a apodrecer em minha cabeça – começam a parecer personagens, em vez de gente de verdade", tenta explicar. O escritor trabalha ouvindo música alta, porque "a música me envolve e mantém o mundo lá fora", quase sempre durante as manhãs. "Quando você escreve, está criando seus próprios mundos: a escrita está em seu melhor momento quando parece um tipo de jogo inspirado para o escritor", acredita.  

Além de recomendações incisivas, como evitar o uso de advérbios e da voz passiva, Stephen King chega ao requinte de estabelecer prazos para revisão e para a reescrita dos originais. Vale lembrar que ele não faz tudo o que prega: basta perceber que alguns dos caudalosos livros recentes estão inundados de descrições pormenorizadas, um dos itens que o escritor condena. Outras passagens parecem incluídas mais pela possibilidade de gerar frases de efeito do que propriamente para exprimir o pensamento do autor.  Mas não deixa de ser atraente conhecer a forma de trabalhar de um escritor inegavelmente talentoso em uma atividade que remonta à ancestralidade: contar histórias. Como resumiu o escritor John D. MacDonald (1916-1986), na introdução da coletânea de contos Sombras da noite, lançada originalmente em 1977, pouco depois de um dos clássicos de King, O iluminado, adaptado para o cinema em 1980 por Stanley Kubrick: "Não dou a mínima para a área que Stephen King escolheu para escrever. O fato de ele atualmente gostar de escrever sobre fantasmas e feitiços e coisas deslizando no porão é para mim o que há de menos importante e menos útil sobre ele que alguém possa me contar: King é um escritor muito, muito melhor aos 30 anos que eu era aos 30 ou aos 40, tenho o direito de odiá-lo um pouquinho por causa disso".


As lições de King

Descrição

"A descrição pobre deixa o leitor confuso e míope. A descrição exagerada o enterra em detalhes e imagens. O truque é encontrar um bom meio-termo. Também é importante saber o que descrever e o que deixar de lado enquanto você se concentra no trabalho principal, que é contar uma história (…). Para mim, a boa descrição consiste em apenas alguns detalhes bem escolhidos que vão falar por todo o resto."

Personagens


"As melhores histórias sempre são sobre pessoas, e não sobre acontecimentos, ou seja, são guiadas pelos personagens."

História

"A boa ficção sempre começa com a história e progride até chegar ao tema, quase nunca começa com o tema e progride até chegar à história. Uma das únicas exceções que consigo pensar são alegorias como A revolução dos bichos, de George Orwell."

Transformação


"Embora seja impossível transformar um escritor ruim em competente, e igualmente impossível transformar um escritor bom em um incrível, é sim possível, com muito trabalho duro, dedicação e conselhos oportunos, transformar um escritor meramente competente em um bom escritor."

Medo e afetação


"A boa escrita costuma vir ao deixarmos o medo e a afetação de lado. A própria afetação, que começa com a necessidade de definir certos tipos de escrita como `bons´ ou `ruins´, é um reflexo do medo. E o medo é a raiz da má escrita."

Advérbios infernais


"O advérbio não é seu amigo. Assim como a voz passiva, parece ter sido criado para o escritor tímido. Acredito que a estrada para o inferno esteja pavimentada com advérbios."

A palavra e o sentido

"A palavra é apenas uma representação do sentido. Mesmo em seus melhores momentos, a escrita quase sempre fica aquém do sentido como um todo."

Por que escrever


"Ganhei muita grana com meu trabalho, é verdade, mas jamais coloquei uma mísera palavra no papel com o objetivo de ser pago por ele. Escrevo porque é algo que me completa, pela alegria sincera que a escrita me dá. Se você consegue escrever porque sente alegria, vai escrever para sempre."



Sobre a escrita  A arte em memórias
. De Stephen King. Tradução de Michel Teixeira
. Suma de Letras
. 256 páginas
. R$ 39,90

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