Versos intensos

Ensaísta e tradutora premiada, Ligia Cademartori estreia na poesia com o livro O tempo é sempre

por 23/05/2015 00:13
Daniel Ferreira/CB/D.A Press
Daniel Ferreira/CB/D.A Press (foto: Daniel Ferreira/CB/D.A Press)
Carlos Marcelo



“Para grande surpresa minha, vieram.” Assim, sem firulas ou mistificações, a ensaísta e tradutora Ligia Cademartori define a sua primeira incursão pela poesia. O tempo é sempre (7 Letras) reúne versos escritos nos últimos anos pela gaúcha de Santana do Livramento, radicada em Brasília desde 1984, e autora de livros de referência como Períodos literários (Ática) e O que é literatura infantil (Coleção Primeiros Passos, Brasiliense, 1986).

Admiradora de poetas como Ferreira Gullar, Paulo Henriques Britto e Armando Freitas Filho, Ligia chega a citar este nos versos finais de Deixe estar: “Diz Armando em sua vidência: se ao esquecimento resiste, é o apogeu da existência”. A autora explica a citação: “Sou, desde sempre, leitora de Armando Freitas Filho. Vacilei antes de escrever a citação-homenagem a ele, temendo ser arrogante”.

Na apresentação do livro, o poeta Adalberto Müller destaca: “A poesia de Ligia Cademartori não tem medo do vazio, não tem medo de buscar um sentido para a experiência no deserto da vida contemporânea, deserto de imagens vazias, de paixões rarefeitas – afinal, não é no vazio mais absoluto que se encontra a plenitude?”. Versos plenos de intensidade, de emoções contidas e subitamente libertadas, de imagens fortes construídas a partir de palavras escolhidas com rigor compõem O tempo é sempre.

Na entrevista a seguir, Ligia Cademartori confirma a influência da tradução (“a forma mais íntima de leitura”) na sua produção poética e pede, com a experiência de quem escreveu livros adotados pela comunidade acadêmica, como O professor e a literatura – para pequenos, médios e grandes (Autêntica, Prêmio FNLIJ, categoria “teórico” em 2010): “É preciso aproximar a poesia dos professores e dos alunos”.

O TEMPO É SEMPRE
. De Ligia Cademartori
. 7 Letras, 58 páginas, R$ 28
. Pode ser encomendado em livrarias virtuais ou no site www.7letras.com.br





Entrevista

Ligia Cademartori
escritora

Qual a principal matéria-prima para os seus poemas? O tempo, a memória ou a combinação de ambos?

Tempo e memória se fundem e confundem, principalmente na minha idade.

O exercício da tradução influenciou de alguma forma o seu fazer poético? O que há em comum entre traduzir e criar poemas?

Sem dúvida, esses fazeres foram fortemente influenciados pela tradução, a forma mais íntima de leitura. Tenho traduzido Dickens; o anônimo autor de Lazarilho, Miguel de Cervantes e outros. Algo você aprende.
Em uma sociedade midiática, qual o papel dos professores no despertar dos alunos para a literatura?

Todo. Os professores temem ensinar poesia e os alunos não estão minimamente familiarizados com o gênero. É preciso aproximar a poesia de ambos. Existe uma mistificação do professor em relação à poesia. Não lidam bem com o lúdico.

Como é possível inserir a poesia no cotidiano de uma criança? Que exemplos de poemas e/ou autores são indicados para os que se iniciam nas letras?

Quando os laureados Seamus Heaney e Ted Hughes fizeram uma antologia poética de 544 páginas para estudantes, sintomaticamente chamada de School bag (mochila), deixaram claro que a educação literária inicia pelo poético.

Quais são os versos da língua portuguesa que mais a marcaram e que ainda lhe causam assombro?

Quando adolescente: “Bárbara bela do Norte estrela, que o meu destino sabes guiar, de ti ausente, triste somente, as horas passo a suspirar”. Depois, cabralina: “Não há falta na ausência”.



POEMAS SELECIONADOS

NÃO ERA VIDRO

A tristeza foi tecida
com farrapos de euforia,
mas o manto se rompeu.
Coser fração por fração
de montagem complicada
não recupera o bordado.
O que surge da costura
é distinto do que havia,
quando o pano, novo ainda,
servia de cobertura
a sonhos, iluminuras,
risos fáceis, vida leve,
algodão e cristal fino.
Tão fino que se partiu.


CERCO

Avança lenta, não derruba porta.
Ronda a casa e, às vezes, deita na cama.
Usará punhal? Envenena aos poucos?
Vai sugar a pouca força encontrada
no corpo já partido, definhado?
Talvez, compadecida com o cansaço
das pupilas que nada querem ver,
– ou sequer sonhar – ela encurte o ato,
e rompa logo o cordame dos cabos,
livrando o barco para, enfim, zarpar.


VIDA SECA

Ah, pare com tantos ais,
que a vida não é mais que isso.
Tem o duro, o bruto, o presto,
brilho, riso é só resto.
Não busque o que não se acha.
Não lamente. Já, já passa.
E uma outra agonia se acha.
Não entre na dor tão fundo,
nem queira tanto do mundo.
Veja a cadela Baleia
e a lição que ela nos dá.
Foi somente ao morrer que,
feliz, vislumbrou preás.


HERANÇA

O pegar o touro à unha,
o dar o boi e a boiada
pela guerra ou pela paz,
a tempestade num copo
e a festa na tempestade,
vontade como de ferro,
coração como borracha,
compreensão inesperada,
o verso nunca converso
e a intensidade do ódio
com o amor mais desbragado,
noite adentro, tardo dia,
acolhida e rebeldia,
esse legado de ti.


CIDADE VISÍVEL

Quando alegre passante eu te percorria,
entregue à imediata invasão dos sentidos,
meu olhar sequestravas sem pedir resgate,
impregnando meu paladar e olfato
em ilusão de posse em que eu te domino.
Mas nunca te habitei. Tu, sim, me habitaste,
inconcluso amor não há tempo que mate.
Mesmo agora, que és paisagem interna,
quando te visito, não mais estrangeira,
tuas vias se confundem em minhas veias.

MAIS SOBRE PENSAR