Os últimos passos DE UM HOMEM

O jornalista e escritor Ricardo Gallo busca as razões da recente execução de dois brasileiros condenados à morte por tráfico de drogas pela Justiça da Indonésia

por 16/05/2015 00:13
Saeed Khan/AFP
Saeed Khan/AFP (foto: Saeed Khan/AFP )
Eduardo Murta



A morte é um assombro a qualquer tempo – navalha deslizando entre a pálpebra e a órbita dos olhos. Blecaute. Com hora marcada, direito a rituais sinistros, então, ela ganha contornos que parecem transformá-la definitivamente em coisa de outro tempo – não deste. O que dizer da marca de tinta preta sobre a camisa branca, à altura do coração? Singelo detalhe, não fosse ele a senha para o atirador, que, por sua vez, ouvirá um apito e verá um oficial levantando a espada. Fogo! Termina ali – ou recomeça – a história dos tantos executados num país do Sudeste asiático que, até o ano passado, era mais reconhecido por brasileiros por suas imagens cinematográficas e turismo exótico que por seus pelotões de fuzilamento.

Hoje, quando mencionarem Indonésia, alguém haverá de observar que ali, para além das praias paradisíacas de Bali e do instigante templo de Borobudur, há protocolos implacáveis quando o assunto é tráfico de drogas: a sentença capital. Ainda sob os efeitos da execução do segundo brasileiro neste ano (Rodrigo Gularte, fuzilado em 28 de abril), a leitura de Condenado à morte, do jornalista Ricardo Gallo, sem se propor a ser um tratado filosófico, é um dos referenciais para tratar a questão à margem dos discursos fáceis do “pega e mata” bradado em fóruns de botequim ou da vitimização reducionista de um homem condenado por tráfico.

Ao mergulhar no caso do carioca Marco Archer Cardoso Moreira, o primeiro brasileiro a receber a pena capital e ser executado no exterior, Gallo, acertadamente, busca outro ângulo: o dos porquês. Preso em agosto de 2003 com 13,4kg de cocaína em tubos de asa-delta, condenado em 2004, Archer foi morto em 17 de janeiro, sob um debate que, no Brasil, mais ajudou a espalhar estigmas que a compreender o fenômeno e a refletir sobre todas suas dimensões. O trabalho de Gallo, paulista de Guarulhos, 35 anos, há 12 atuando como repórter da Folha de S. Paulo, é peça pra lá de bem-vinda nesse quebra-cabeças.

Em seu livro-reportagem, ele reconstrói os passos de Archer desde a compra dos 29 pacotes de cocaína no Peru, revisita os sonhos de juventude do esportista campeão de asa-delta e playboy que começaria como “mula” do filho de um empresário carioca e se “especializaria” na Holanda. Mais do que isso, Gallo mergulha no histórico da Indonésia exatamente para detalhar como e por que a pena capital foi adotada por lá, ao mesmo tempo em que desmonta a tese rasa de redes sociais que enxerga rígidos e irreparáveis valores morais nesse padrão. Ao contrário, revela esquemas de corrupção, tráfico de influência e vendas de sentença.

A narrativa dialoga bem com o script, especialmente nas chamadas cenas de movimento: apreensão, fuga, prisão. A taquicardia está presente ali. Gallo talvez tenha sido demasiadamente contido ao se ver diante de uma tentação: como descrever a angústia, o abismo, a solidão de um condenado sem cruzar o círculo de giz do jornalismo? Fez sua escolha dentro do que considerou próprio a um livro-reportagem, em que o distanciamento de autor e personagem é uma espécie de demarcação e terreno. Fica, provavelmente, para o romance – quem sabe, com direito a uma capa que não confunda simplicidade com simplismo, como nesta edição da Três Estrelas. Nada, porém, que tire fôlego e substância deste Condenado à morte, vitamina jornalística para um tempo em que as medidas de assombro andam aniquilando em muita gente até a capacidade de enxergar um palmo além do nariz. Mas essa é uma outra história...




Trechos

“Enquanto caminha, o brasileiro observa três dos policiais saírem em busca de ferramentas para abrir os tubos. Apenas um deles fica para vigiá-lo e, por um segundo, o homem lhe dá as costas. Chegou a hora. Ele olha para os lados e começa a andar em rápidas passadas. Sem que o policial perceba, toma a decisão mais ousada e improvável: fugir.”


“Mesmo condenado à morte, Marco assente com a cabeça e junta as mãos em sinal de reverência, repetindo um cumprimento indonésio habitual. ‘Ali eu tive a convicção de que estava tudo perdido e de que eu poderia morrer’”


“A segunda cruz da esquerda para a direita está destinada a Marco. Não muito longe dali, cinco ambulâncias aguardam a execução. Dentro de cada veículo, há um caixão com um nome afixado numa folha de papel (...) Assim como os demais prisioneiros, Marco veste uma camisa branca. Sobre ela, o médico faz com tinta preta uma marca na altura do coração, a fim de facilitar a mira dos atiradores.”

Condenado à morte

. De Ricardo Gallo
. Editora Três Estrelas
. 143 páginas, R$ 27




Cinco perguntas para...

Ricardo Gallo
jornalista e escritor

No Brasil, a execução de Marco Archer despertou debates extremados especialmente nas redes sociais – do histerismo pró-pena de morte a uma posição mais alinhada com os direitos humanos. Em que medida o seu livro pode contribuir para uma reflexão mais abalizada?

Meu livro certamente ajuda a esclarecer que a Indonésia não é exemplo de honestidade. Lá, é possível a alguém com dinheiro e bons contatos comprar uma sentença favorável ou mais branda. Então, é um país com sérios problemas de transparência e governança em todas as esferas, e uma corrupção que não se compara à do Brasil. Respondendo diretamente a sua pergunta, penso que o leitor pode ter uma visão mais aprofundada da pena de morte e suas consequências e de como a corrupção influencia nesse processo.

O curioso é que, três meses depois, mais um brasileiro é executado, e a repercussão já não é mais a mesma. Nos acostumamos rapidamente?

Estamos em um momento do país em que um certo tipo de conservadorismo radical, que ficava inibido, voltou à superfície. Isso pode ser visto na composição do Congresso e na agenda conservadora pautada, principalmente, pelo novo presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Entre quem é favorável à pena de morte, há um sentimento de vingança, como se um crime fosse compensado por outro.

Além das várias conversas por telefone, você esteve por algo em torno de 16 horas cara a cara com Marco Archer. O que vai nos olhos de um condenado à morte?

No caso do Marco, alguém que não acreditava que fosse morrer. Que estava ali por um tempo e que em algum momento deixaria a prisão. Ali havia um clima triste, opressor. Dava vontade de sair rápido dali – da prisão, da cidade. Tive essa impressão todas as vezes em que fui lá.

Era o cheiro da morte?

Nas duas vezes em que estive para as execuções (incluindo a de Rodrigo Gularte), certamente foi a execução que motivou esse sentimento. É estranho, como se fosse um réveillon macabro – as pessoas esperando o momento em que os tiros virão.

Eu notei um certo cuidado em não humanizar o personagem a ponto de glamorizá-lo ou torná-lo uma vítima. Foi preocupação calculada ou cacoete de repórter?

Foi, mas não foi um efeito calculado. O Marco era um sujeito cativante, carismático, era fácil gostar dele. Mas eu precisava de um distanciamento a ponto de escrever com isenção sobre situações em que ele havia cruzado a linha do que era legal ou não. Ele certamente não foi vítima. O que discordei, e ainda discordo, foi da maneira como tudo terminou. Penso que a execução na Indonésia, e a pena de morte em geral, é uma espécie de assassinato com hora marcada que tortura o condenado e seus familiares e não necessariamente resolve o problema de fundo – as drogas e a violência.

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