A vida é uma selva

O confronto parece estar presente o tempo todo no último filme do documentarista Eduardo Coutinho. Com a morte dele, quem finalizou o longa foi João Moreira Salles

por 16/05/2015 00:13
Videofilmes/Divulgação
Videofilmes/Divulgação (foto: Videofilmes/Divulgação )
Marcelo Gomes



Conflito. Essa seria a palavra que talvez resumiria Últimas conversas, de Eduardo Coutinho. Um filme onde ele decide focar sua atenção nos jovens. Nunca em sua filmografia o documentarista havia se debruçado tanto sobre a juventude. Desde a primeira imagem, a desarmonia se estabelece. Inesperadamente, Coutinho aparece, na cadeira do entrevistado, e confessa a impossibilidade de seguir filmando os jovens. No fim do quarto dia de trabalho, a crise se estabelece e ele confessa: “Eu não estou conseguindo”.  Ele ainda sentencia: “Eu me arrependo de não ter feito com crianças”.

Coutinho sente que os jovens chegam à entrevista cheios de amarras, escudos, já estão moldados, são impenetráveis como um concreto armado. Mas ele não desiste, assume o desafio e segue em frente. Chega a primeira entrevistada: Tayná – uma poeta niilista de óculos e cabelos cacheados. Antes mesmo de se acomodar na cadeira, Coutinho já anuncia para Tayná: “Olha, nós estamos fazendo um filme que deve dar errado”.

Embate


O filme segue uma estrutura fiel à obra de Eduardo Coutinho, mas com uma diferença: existe, em todo o trabalho, um quê de tensão que vai estar sempre no limiar do suportável. Coutinho se mostra um velho sem nenhuma paciência com os jovens. Uma jovem revela que tem medo de se apaixonar e ele manda um torpedo: “A vida é uma selva”. Em outros momentos, levanta as contradições das falas dos jovens colocando eles contra a parede. O entrevistado Thiago Theodoro diz: “A vida ou é amor ou é morte”. Coutinho discorda: “Não, a vida é amor e morte”. O confronto está o tempo todo presente. Parece que a qualquer momento um arranca-rabo vai acontecer.

Fricção


Mas esse desarranjo parece ser o caminho para construir uma ponte emocional entre o velho e os jovens. O confronto poderia ser a estratégia que ele criou para quebrar o gelo ou uma forma de expressar um carinho às avessas. A porta da sala se abre e se fecha para a entrada de diferentes jovens que revelam momentos-chave de suas vidas, suas angústias, seus amores e seus sonhos. Narram momentos de dores profundas como bullying na escola e tentativas de abusos sexuais. Momentos às vezes deliciosos, às vezes impressionantes, às vezes surpreendentes. O velho ranzinza conseguiu. Seja por acaso ou não, a estratégia do conflito nos leva até momentos sublimes.

A última entrevistada é uma criança de seis anos. A atitude como entrevistador muda. Já não existe conflito, e sim doçura, amabilidade. Ali é lugar do conforto, da segurança. E ele finaliza o Últimas conversas proclamando: “Eu deveria ter entrevistado crianças!”. Mas, realmente, não é o que se prova. Na incomunicabilidade, no embate, na tensão revelada, está a compreensão de um momento da vida conflitante: a juventude. Na criança, está o singelo, o lúdico, o carinhoso. Já o jovem é uma mistura de uma criança que não existe mais com um adulto malformado, em processo ou em potência.

O filme está ali, no embate entre um velho e os jovens. Talvez porque a juventude seja algo tão complicado quanto a velhice. Na juventude, todas as portas se abrem para eles e isso deixa-os desnorteados. Na velhice, todas as portas começam a se fechar e um sentimento vertiginoso toma a alma do velho. Não é à toa que o filme termina com uma porta se fechando. Bravo, Coutinho!

Um cabra marcado

Maior documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho (1933–2014)  realizou 14 longas-metragens. Nascido em São Paulo, chegou a estudar direito, mas não concluiu o curso. Interessado em cinema, mudou-se para Paris no final dos anos 1950, onde realizou seus primeiros documentários. De volta ao Brasil, envolveu-se com o cinema novo.

No Nordeste, Coutinho conheceu Elizabeth Teixeira, viúva do líder das Ligas Camponesas João Pedro Teixeira. A partir desse encontro, começou a filmar a reconstituição do assassinato do camponês. Com o Golpe de 1964, o projeto foi interrompido pelos militares. Só viria a ser concluído 20 anos mais tarde, resultando no mais importante filme de Coutinho, Cabra marcado para morrer (1984).

Ainda nos anos 1960, teve uma passagem pela ficção. Roteirizou A falecida (1965) e Garota de Ipanema (1967), ambos de Leon Hirszman, como também dirigiu filmes como O homem que comprou o mundo (1968). Já na década de 1970, integrou a equipe do Globo repórter, realizando uma série de filmes para TV até meados dos anos 1990. A partir de 1999, com Santo forte, começou uma produção contínua de documentários: entre eles, estão Edifício Master (2002), Peões (2004) e Jogo de cena (2007).

Em 2 de fevereiro de 2014, Coutinho foi assassinado a facadas em seu apartamento no Rio de Janeiro pelo filho Daniel, que sofre de esquizofrenia. Julgado em abril, Daniel foi absolvido sumariamente, mas ficará internado em estabelecimento para portadores de doença mental pelos próximos três anos.

. MARCELO GOMES é cineasta, autor de Cinema, aspirinas e urubus e O homem das multidões (com Cao Guimarães), entre outros.

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