Mercado aquecido

por 11/04/2015 00:13
Veneta/Divulgação
Veneta/Divulgação (foto: Veneta/Divulgação)
André Miranda



A graphic novel Talco de vidro pode ser resumida em duas imagens: o olhar vazio da protagonista Rosângela de um lado, e o sorriso cheio de dentes de sua prima do outro. Rosângela é uma mulher de classe média alta, casada com um homem de classe média alta, mãe de duas crianças que estudam em colégios particulares e que, se tudo correr conforme o planejado, serão de classe média alta. A prima não tem nada disso: nem dinheiro, nem família construída, nem muita classe. Mas a prima sorri abertamente para o que está por vir, enquanto Rosângela apenas observa e lamenta, afundada numa tristeza silenciosa.

No traço do quadrinista Marcello Quintanilha – um dos poucos brasileiros que alcançaram projeção internacional no gênero sem desenhar heróis sarados –, a história de Rosângela passa por depressão, preconceito social, solidão urbana, inveja e as consequências que tudo isso pode acarretar para a vida de uma personagem que pode ter 30, 40 ou quantos anos for mais próximo da identificação do leitor. Lançada pela editora Veneta, Talco de vidro é a sexta graphic novel publicada por Quintanilha, e a mais universal, a que mais se aproxima da vida de qualquer um.

“Todos sabemos o quão comuns são esses sentimentos, apesar de pouco serem verbalizados. Rosângela se vê superior à prima, mas isso não depende apenas de classe social. Se ela fosse pobre, arrumaria alguma outra coisa para colocá-la em outro nível”, diz Quintanilha. “E a frustração insuperável que Rosângela sente também é uma sensação comum. Tem uma coisa do ser humano de não aceitar se sujeitar às condições que a vida impõe. A gente percebe isso no cotidiano quando vemos alguém se afastando de um meio ou deixando de falar com outras pessoas. É a ideia de que você só aceita participar de uma brincadeira se for com suas regras.”

Nascido em Niterói em 1971, Quintanilha completa em maio 13 anos vivendo em Barcelona. Ele se mudou para a Espanha depois de assinar contrato com a editora belga Le Lombard, para a qual ilustrou os sete volumes da série policial Sept balles pour Oxford, ainda inédita no Brasil. A intenção era ficar apenas alguns anos numa cidade próxima a Bruxelas, sede da Lombard, simplesmente a editora que por décadas publicou as histórias do personagem Tintin, do cartunista Hergé. Mas foram aparecendo trabalhos pela Europa, e os planos mudaram: hoje, Quintanilha vem ao Brasil poucas vezes no ano, para visitar parentes ou lançar novos livros.

O afastamento físico, contudo, não o levou a um distanciamento espiritual, como fica claro em Talco de vidro. Toda a história é passada em Niterói, com descrições sobre bairros como o rico Icaraí (onde vive Rosângela) e o proletário Barreto (onde vive a prima), ou reproduções de cenas como a luz entrando pelas janelas do Museu de Arte Contemporânea e a vista da cidade com a Ponte Presidente Costa e Silva ao fundo. “Os anos fora não mudaram em nada minha percepção do país. Não me sinto nem minimamente longe do Brasil e, cada vez que volto, é como se nunca houvesse saído. Então, foi muito fácil desenhar Niterói. A cidade é o que eu sou. Eu vivi muitas das situações que estão no livro em primeira pessoa mesmo, não foi difícil”, conta.

Hoje, Quintanilha tem seis graphic novels publicadas: Fealdade de Fabiano Gorilla (1999, pela Conrad), Sábado dos meus amores (2009, Conrad), Almas públicas (2011, Conrad), Ateneu (2012, Ática), Tungstênio (2014, Veneta) e a nova Talco de vidro. Além disso, seu currículo inclui ilustrações para os jornais espanhóis El País e La Vanguardia; os álbuns para a Lombard; um livro sobre Salvador para a série Cidades ilustradas, da editora Casa 21; a arte do disco A invasão do sagaz homem fumaça (2000), do Planet Hemp; e animações para o filme espanhol Chico & Rita (2010), que foi indicado ao Oscar em 2012.

O que mais chama a atenção nos quadrinhos de Quintanilha é seu estilo de texto, extremamente preocupado com a narrativa e a construção dos diálogos. Em Talco de vidro, a narração é praticamente uma obra de literatura que funciona independentemente dos desenhos, e os balões de falas são preenchidos com frases absurdamente realistas. “O texto decorre de um aprendizado permanente. Aprendi muito sobre oralidade lendo Mário Filho. Também aprendi muito lendo Mário de Andrade, pela maneira como ele dava voz aos personagens. Eles foram peças-chave para eu desenvolver meu trabalho, que realmente se caracteriza muito pelo texto”, afirma.

Quintanilha também esteve na França, para participar do Salão do Livro de Paris e lançar Mes chers samedis, versão em francês para Sábado dos meus amores. Para ele, os quadrinhos brasileiros retomaram um processo que foi interrompido muitas vezes por contextos econômicos e políticos: “Nos anos 1990, por exemplo, era impossível publicar quadrinho no Brasil. Mas, de 2002 para cá, esse mercado se aqueceu. Só que eu acho que, em termos editoriais, ainda é pouco tempo para sabermos se é um mercado sólido”.



TALCO DE VIDRO
. De Marcello Quintanilha
. Editora Veneta
. 156 páginas, R$ 59,90

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