Todo mundo é de Oxum

Olhos d'água, escrito pela mineira Conceição Evaristo, reúne histórias que remetem à saga do negro brasileiro. Com sua obra, a autora causou sensação no Salão do Livro de Paris

por 04/04/2015 00:13
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Ângela Faria

Conceição Evaristo se sentiu como “fruta rara” ao chamar tanto a atenção no Salão do Livro de Paris, realizado em março. Estrela entre os 43 colegas que representaram o país no evento que homenageou o Brasil, a escritora, pragmaticamente, constatou: ainda causa furor a mulher negra brasileira se destacar em instâncias fora das habituais, sobretudo no universo intelectual. Fosse um festival gastronômico, nada demais se ali estivessem as baianas do acarajé... Ninguém se espantaria em ver uma cantora negra abafando em Paris.

Nós, mineiros, gostamos de encher a boca para nos dizer conterrâneos de Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Adélia Prado, Afonso Romano de Sant’Anna, Henriqueta Lisboa e Pedro Nava, entre tantos outros. Fadadas à condição de frutas raríssimas em sua própria terra, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Conceição Evaristo, de 68 anos, ainda estão “confinadas” a faculdades de letras ou eventos voltados para a valorização dos afrodescendentes. Negras, ex-faveladas e talentosíssimas, essas duas mineiras conquistaram duramente o seu lugar na cultura brasileira. Mas os livros escritos por elas são raridade nas prateleiras de nossas lojas.

Como Carolina, autora do clássico Quarto de despejo (1960), Conceição Evaristo põe abaixo o mito cínico da “democracia racial” brasileira. Questiona a nossa tão celebrada mestiçagem, talhada sob medida para diluir – e, digamos, embranquecer – a vigorosa herança africana com que fomos brindados. Nascida numa favela da Zona Sul de BH, ela trabalhou como empregada doméstica, formou-se normalista. A cozinheira-estudante chegou a ouvir de uma patroa, aliás professora: “Estudar pra quê? Você é tão boa no fogão...”

O amor pela escrita veio da família formada por boas contadoras de causos. Ecos da África ancestral, com sua preciosa cultura oral, e também de nossa velha e boa prosa mineira. Na década de 1970, Conceição mudou-se para o Rio de Janeiro, entrou na faculdade, tornou-se professora. Trocou as panelas pelo mestrado e doutorado em literatura.

Conceição encantou os franceses, mas tente comprar um romance dela em sua cidade natal. Nem sombra de Ponciá Vicêncio (2003) nas livrarias autointituladas megastores do Pátio Savassi e do Diamond Mall. O livro foi publicado nos EUA há oito anos e a edição francesa acaba de sair. Depois do salão parisiense – onde, aliás, autografou a nova edição de Ponciá –, a autora seguiu para compromissos em universidades britânicas. Afinal, a conterrânea de Drummond e Rosa tem muito a dizer ao mundo: escreveu também Becos da memória (romance lançado em 2006), Poemas da recordação e outros movimentos (2008) e Insubmissas lágrimas de mulheres (volume de contos, em 2011).

Este mês, Conceição é esperada em BH para autografar Olhos d’água (Editora Pallas), seleção de contos que, à primeira vista, nos falam dos chamados “excluídos” – como se o mundo estivesse dividido entre nós, os “incluídos”, e “eles”. Ledo engano: o feitiço da palavra, herança ancestral dessa mineira, rompe as fronteiras de nosso “apartheid particular”. Guiados por ela, nos tornamos cúmplices de todas as personagens: a mulher de bandido Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, a menina Zaíta. Fazemos nossas as alegrias, dores e epifanias de cada uma delas.

Sabe aquelas cenas da TV que nos deixam penalizados, mas pouco depois nos esquecemos delas? Conceição Evaristo constrói pontes metafóricas capazes de nos fazer lembrar. Cruzamos a tal cidade partida, depomos nossas couraças e preconceitos para velar Ana, a moça grávida executada pela polícia ao lado do bandido Davenga; para voar delirantemente com a mendiga Duzu por entre varais; e para acolher o corpo de Maria, linchada por gente-de-bem num ônibus recém-assaltado. O cadáver do garoto de rua Di Lixão, ali no canto do passeio, passa a fazer – sim – parte da nossa vida. E rezamos para que Lumbiá, atropelado depois de roubar o Jesus Cristinho do presépio, se torne menino-deus naquela véspera de Natal. Acolhemos em nosso colo Zaíta, a garotinha ceifada por balas perdidas. Simplesmente não dá para zapear e jogar a culpa no “sistema”.

Oxum – orixá das fontes, cachoeiras e rios – abençoa esse livro. Símbolo da purificação, da cura, da fertilidade e, sobretudo, da transformação, a água está onipresente nos contos de Conceição. E jorra – com força – em pequenas celebrações da vida. Ana Davenda descobre o amor em meio às lágrimas do valente companheiro. Da boca de Maria, vítima de linchamento, brotam rios de sangue. Natalina, feliz e orgulhosa, espera a bolsa arrebentar: sim, o quarto filho será só dela, ao contrário dos outros. E a bela Salinda represa o choro enquanto se arma para lutar pelos filhos com o marido vingativo e violento. Corredora compulsiva, Cida tem como companheiro o sol, que “nasce molhado na Praia de Copacabana”. Caberá ao mar ensinar a essa moça batalhadora sobre a fragilidade do tempo, varal onde se estende a vida.

Pobreza, preconceito, violência, injustiça e dor marcam a trajetória dos personagens de Olhos d’água – pretos, pobres, herdeiros da diáspora africana. Ao nos deparar com boa parte deles nas ruas, protegemos a bolsa. Mudamos de calçada. Alguns dos meninos da Conceição, aliás, estão entre os garotos daquela estatística a que damos de ombros, enquanto apoiamos a redução da maioridade penal. Sim, em nossa “democracia racial”, 77% dos brasileiros de 15 a 29 anos assassinados são negros.

Como lembra a professora de literatura Heloísa Toller Gomes no prefácio do livro, Conceição Evaristo evita a armadilha de sentimentalismos facilitadores. Não apela à nossa pena, culpa ou altruísmo. Sem meias palavras, essa mineira delicada e guerreira simplesmente nos intima a pensar no que realmente “sabemos” sobre gente como Di Lixão, Davenga, Duzu, Lumbiá, Ardoca, Kimbá, Luamanda, Natalina...

Que Oxum lave os nossos olhos.

OLHOS D’ÁGUA
• De Conceição Evaristo
• Editora Pallas
• 113 páginas, R$ 25

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