Autoengano e redenção

Em Sudário, o escritor irlandês John Banville aborda o tênue limite entre a verdade e a mentira. Trama se inspirou no caso Paul de Man

por 04/04/2015 00:13
Max Nash/AFP
Max Nash/AFP (foto: Max Nash/AFP)
Ubiratan Brasil

escritor irlandês John Banville sempre pregou a frieza e a impessoalidade como valores artísticos. Ex-crítico e subeditor do jornal Irish Times, sua meta é escrever uma ficção tão densa quanto a poesia, o que resulta em textos refinados, pontuados por expressões pouco usuais. Foi assim em O mar, seu romance mais cultuado (e que lhe rendeu o Man Booker Prize de 2005), e Sudário, que, embora publicado em 2002, sai agora no Brasil. Trata-se do segundo volume da trilogia iniciada com Eclipse e finalizada com Luz antiga, ambos publicados no país. Em todos, a trama gira ao redor dos mesmos personagens, alternando apenas o protagonismo.

Acadêmico internacionalmente reconhecido, Axel Vander recebe a carta de uma jovem interessada em sua obra. Os dois marcam um encontro em Turim e Vander não esconde o nervosismo, pois a pesquisadora Catherine Cleave pode ter descoberto que ele não passa de um impostor. Ela é filha do ator Alexander Cleave, protagonista de Eclipse. Cass, como é chamada, sofre de uma anomalia semelhante à esquizofrenia, pois ouve vozes e é obstinada na pesquisa acadêmica – a ponto de, durante o trabalho, descobrir algo sobre Vander. Mesmo assim, quando o encontra em Turim, não o coloca contra a parede. Ao contrário, inicia um relacionamento com ele.

A trama soa rocambolesca, mas a escrita de Banville torna o enredo algo especial. O autor se inspirou na história real do teórico literário Paul de Man (1919-1983). Aclamado mundialmente, ele perdeu prestígio quando se descobriu que, durante a Segunda Guerra Mundial, escreveu artigos antissemitas para um jornal colaboracionista durante a ocupação alemã na Bélgica.

Em Sudário, Banville partiu do incidente com De Man e tornou o enredo algo ainda mais complexo, pois Vander surge como um homem que assumiu a identidade de um amigo morto em circunstâncias inexplicáveis. É dessa forma que, depois do conflito mundial, ele se muda para os Estados Unidos, onde constrói sua aclamada carreira. O título do livro joga com identidade: assim como o santo sudário é uma peça venerada, mas contestada, Vander é um teórico respeitado, mas não passa de um embuste.

Banville também joga com a identidade em sua carreira profissional, mas sem a desconfiança de ser um engano: sob o pseudônimo de Benjamin Black, desenvolve uma série de romances policiais, todos publicados no país pela Rocco. O mais recente é Rastros na neblina. Além de reforçar as cenas de ação, o escritor aposta no erotismo e, principalmente, em algo que o torna peculiar: minuciosas descrições da sociedade irlandesa dos anos 1950.

SUDÁRIO
• De John Banville
• Editora Biblioteca Azul
• 296 páginas, R$ 39,90



ENTREVISTA/John Banville


“Escrever é terrível”


Faz mais de uma década que Sudário foi lançado. O que pensa da obra hoje?
Com certeza, um de meus romances mais sombrios. Em Axel Vander, quis criar um personagem o mais antipático possível, que, ainda assim, conseguisse extrair ao menos uma pequena simpatia dos leitores. O livro é também um lamento pela pobre Class Cleave, que, junto de Petra de Os infinitos, está entre minhas invenções femininas mais tristes. Sudário é certamente um livro difícil, mas não frio – assim espero.

Axel Vander é um narrador, de certa forma, pouco confiável. Isso complicou o processo de escrever o romance?
Nenhum narrador é confiável. Que pessoa o conhece suficientemente, ou com suficiente honestidade, para dar um relato confiável de motivos e intenções? Mas, sim, Axel é um notório mentiroso e enganador, embora, paradoxalmente, também seja tão honesto como pode ser. Assim é a natureza ambígua da arte.

Se escrevesse outro romance sobre essas pessoas, ele seria centrado em Cass, por exemplo?
Sim, um amigo, o romancista argentino Rodrigo Fresan, insiste o tempo todo para que escreva o “livro de Cass”. Mas não posso. Cass é um enigma para mim e assim deve continuar. Ela está entre as personagens inventadas de quem mais sinto falta.

Por que a verdade em seus romances é sempre elusiva, embora importante?
É assim na própria vida, não é? Onde a verdade mente – pergunto-me se a língua portuguesa consegue captar o jogo de palavras aqui – e como ser isolado da névoa da incerteza e do autoengano no qual tropeçamos, nós, pobres e perdidos viajantes nesta Terra.

Este é um romance sobre ausência e luto, mas também trata da possibilidade de redenção e da dificuldade de julgamento, não?
Concordo. Suponho que Axel esteja à procura de algum tipo de redenção. Ele fez muitas coisas terríveis em sua vida, e ele próprio duvida que deva ser perdoado por elas. Axel pode não ter se importado como deveria com os viventes, mas, no fim, está se importando com o agonizante, e talvez isso lhe renda alguma graça dos deuses.

O senhor ficou surpreso sobre como gostou de ser Benjamin Black?
Gostar é uma palavra um tanto forte aqui. Escrever em qualquer forma ou gênero é sempre terrivelmente difícil. Mas, sim, ser Benjamin Black foi uma aventura, sem a qual não poderia viver sem ele. Sua mais feliz ousadia foi personificar Raymond Chandler em A loura de olhos negros. Sabe lá em que outra ele vai se meter...

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