Senhora da África

Chega ao Brasil o romance histórico A rainha Ginga. O angolano José Eduardo Agualusa conta a história da mulher que se aliou à Holanda, combateu Portugal e mantinha um harém masculino

por 28/03/2015 00:13
REVISTA DA USP/REPRODUÇÃO
None (foto: REVISTA DA USP/REPRODUÇÃO)
Ubiratan Brasil


Senhora de um reino poderoso na costa ocidental da África, Ana de Souza (1583-1663) sempre fascinou o escritor angolano José Eduardo Agualusa. “Desde criança ouço histórias sobre a forma como ela, já denominada rainha Ginga, exerceu seu poder com inteligência”, conta o autor. “Mas não tinha coragem para um projeto tão difícil, que exigia uma sólida formação sobre o que se passou naqueles séculos 16 e 17, uma época muito remota.” Certa noite, quando trabalhava em um romance, Agualusa sentiu a irresistível vontade de se voltar à história que há tanto o fascinava. “Quando decidi que o narrador não seria a rainha, mas um religioso brasileiro, comecei a escrever e, em pouco tempo, o livro, que estava incubado, ficou pronto.” A rainha Ginga chega ao Brasil lançado pela Editora Foz.

Nascida Nzinga Mbandi, Ginga se tornou referência de como chefes africanos combateram a política de Portugal em capturar habitantes daquele continente para servir como escravos na América. Hábil guerreira, carismática, ela foi também excelente estrategista política e militar (estabeleceu alianças diplomáticas com a Holanda) e, glória suprema, jamais foi capturada, mesmo passando a vida em combate.

“Apesar de Ginga ter vivido 80 anos, um feito para a época, não sobraram dados suficientes que me convencessem a elegê-la narradora do livro”, conta Agualusa. “Daí minha preferência por Francisco José da Santa Cruz, um homem atormentado, com a fé abalada e ainda dividido entre a lealdade a Portugal e a Ginga”. Nascido em Olinda, o religioso viajou até o Reino do Congo, onde se tornou um dos secretários da rainha, posição que o obrigava a enfrentar uma dualidade: a obediência à soberana contra a rebeldia natural que cultivava por ser originário de um dos povos contra o qual ela guerreava. Na luta contra o poderio português que se estabelecia naquela região da atual Angola, Ginga quase triunfou. “Ela se aliou aos holandeses e, se tivesse vencido, o mapa de África seria hoje bem diferente, assim como o mapa da lusofonia”, diz o autor.

Ginga era fascinante. Agia como homem e exigia ser tratada como rei, vestindo-se com trajes masculinos nos campos de batalha. “Ela também tinha um harém de vários homens, que tratava como mulheres, inclusive obrigando-os a se vestir como tal”, conta Agualusa, lembrando que o povo dongo, ao qual pertencia a soberana, não pregava a monogamia. Esse detalhe, curiosamente, não está em um filme recém-realizado em Angola sobre a rainha. “Como se trata de investimento oficial, o longa teve que ocultar isso por conta do machismo”, revela o autor.

Mais que uma biografia romanceada da rainha Ginga, o livro de Agualusa destaca um novo olhar sobre a historiografia: mostra como os africanos foram parte ativa em ações no passado, ao contrário do que habitualmente é mostrado, e de uma forma bem mais vigorosa. “Os habitantes da África tiveram importante papel no processo de construção de nações, de redesenhar o mapa do mundo e que inclui Brasil e Portugal”, observa. E ressalta a importante participação de índios brasileiros ao lado de tropas holandesas no combate ao poderio português na África. “Foi um negro de Angola, Henrique Dias, quem derrotou o exército da Holanda no Brasil, restabelecendo o domínio de Portugal. Ele ainda participou do resgate de Luanda, que caíra em mãos holandesas” , lembra.

Não apenas Agualusa promove esse processo de resgate da real importância africana na história. O moçambicano Mia Couto escreve sobre um personagem decisivo, Gungunhana, cujo reino, no fim do século 19, chegou a ter representantes diplomáticos de Portugal e Inglaterra. “Li os primeiros capítulos e tenho certeza de que será o melhor romance do Mia”, revela Agualusa. “Ele conseguiu se superar”, conclui.

RAINHA GINGA
• De José Eduardo Agualusa
• Editora Foz
• 240 páginas, R$ 36,90

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