Horizontes de rua e de luta

A perspectiva de mercantilização do carnaval de Belo Horizonte ameaça a festa libertária que ressurgiu na capital. A criminalização dos blocos vai de encontro à alegria cidadã

por 07/03/2015 00:13
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press )
Guto Borges

"Parece antes uma exclamação que um nome%u201D, espantou-se Machado de Assis, cheio de ironia, ao saber que a recém-inaugurada capital de Minas se chamaria enfim Belo Horizonte. De fato, sutilmente, a nomeação deixava escapar certo um limite %u2013 ou, se preferirem, um contorno %u2013 para a inspiração ampla, aventureira e um tanto utópica de futuro que poderia sugerir a fundação de uma cidade que guardava a palavra horizonte atada à sua origem. %u201CEu se fosse Minas, mudava-lhe a denominação%u201D, completava. Mas o incômodo de Machado, parece, não era em vão. Guardava uma espécie de alusão um tanto indireta à história que viria. Afinal, %u201Cnão pise na grama, não nade na fonte, meu belo horizonte foi feito pra olhar%u201D foi o bordão disparado por Saveedra por volta de 2010 em meio ao conturbado cenário de retomada das ruas e do renascimento do mais popular dos festejos brasileiros em Belo Horizonte, deixando claro que o escritor do Cosme Velho de fato intuíra algo sobre nós. A marchinha descrevia o cenário onde a vaidosa exclamação inicial se convertera em um obscuro horizonte de proibições. A praça, o banco da praça, a grama, a pipoca, o vendedor ambulante, o carnaval. Muito distante de qualquer inocência original, o que nos restava àquela altura parecia ser apenas a afirmação arbitrária e pálida de um sonho esvaziado de cidade. Uma negativa. Nada mais. Naquela altura, por volta de 2010 (ora vejam, não faz tanto tempo), vale lembrar: a prefeitura tratava os blocos de carnaval com ameaças de multa aos bares que por acaso os acolhessem. Ou, ainda, bombas de gás lacrimogêneo em pleno sábado de carnaval, quando os blocos já acumulavam alguns milhares de foliões em seus cordões. O Código de Posturas da cidade nem sequer previa algo que não fosse um evento no espaço público %u2013 do tipo com palcos, empresas, patrocínio e lucro privado %u2013 e foram muitas e muitas as reuniões para que se convencessem os administradores desta capital de que se tratava de uma manifestação popular espontânea e livre. Trocando em miúdos, por parte do poder não se fazia a menor ideia %u2013 ou talvez não se quisesse fazer %u2013 do que era um bloco de carnaval em sua dimensão pública. O que, pior, revelava a cidade que nos era imposta: um território sem significado comum algum; acúmulo de mundos privados (carros, apartamentos, CNPJs, shopping centers) se esbarrando sem cortesia alguma. E se hoje o carnaval com suas multidões está nas ruas recuperando em grande medida um sentido comunitário público e político de se viver aqui, o histórico desses últimos seis anos não nos deixa mentir, o faz a contragosto do poder público, que, aliás, já se movimenta imperiosamente, sem diálogo algum, na tentativa de elaboração de leis de cerceamento dessa imensa renovação do horizonte utópico que é hoje a festa de rua entre nós. Afinal, a rua é o nosso mais aventureiro horizonte. É o jogo arenístico de constante negociação. Exige muito jogo de cintura. É conduzida por um sem-número de mãos e trata-se, por isso mesmo, de uma %u201Calma encantadora%u201D. Os nossos carnavais nasceram e nascem a todo instante daí, ou seja, falam essencialmente essa língua plural, transgressora: enquanto %u201Cos Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões (...) a rua continua matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicos futuros%u201D, constatou João do Rio. Pois não é em vão que dizemos: é um carnaval de rua e de luta. E saracoteia de forma encantadora por baixo das pernas dos viadutos, movimenta seus corpos coloridos por entre vilas, parques, becos, vielas, pedreiras, ruas de terra, ruas de lama, campos de futebol. Foi preciso ir visitar a cidade em seus limites e periferias, para além dos seus %u201Cplanos%u201D, para que essa cidade voltasse a existir de forma tão encantadora. Ir até onde a cidade ainda está por fazer-se. Nossos blocos de fato conhecem uma grande cidade, e a conhecem bem, com os olhos das ruas. Conhecemos a amável sensação de acolhimento da gente que nos convida até mesmo para entrarmos em suas moradas, e por isso mesmo já não temos contorno algum. Caminhamos misturados, juntos, em bandos. Pois, a saber, é um mundo público o que ansiamos. O espaço da opinião. Esse motor das construções coletivas, dos muitos sentidos de se viver em comunidade, e certamente do trânsito livre entre iguais. A liberdade, vale dizer, é uma virtude alegre. Ela se encontra nas festas públicas, por exemplo. Está muito mais nas praças, no encontro feliz que a rua nos proporciona, na brincadeira, na invenção, na deambulação, no improviso, no caminhar a pé, no respeito mútuo, no conviver, no sorriso estampado desavergonhadamente no rosto luminoso de toda uma cidade do que nas negociações a portas fechadas. Não habita o gesto daqueles que tentam hoje até mesmo negociar com marcas de bebida o renascimento espontâneo de uma festa popular de rua por aqui. O que, afinal, eles imaginam estar vendendo nessas reuniões que promovem? Que cidade é essa que tramam por lá? Há alguns anos (naquele mesmo 2010), um dos porta-vozes da prefeitura não deixou dúvida: %u201CAqui não é uma democracia grega de criar assembleia em praça pública e decidir os destinos da cidade%u201D, afirmou categoricamente. Vista do lado de fora dos gabinetes, a história parece um tanto diferente. Ainda que perpasse a fala dos representantes do poder público uma espécie de imagem irresponsável, intransigente, quase criminosa dos blocos %u2013 chamados até mesmo de %u201Cdéspotas%u201D, %u201Cassassinos da liberdade%u201D pelo prefeito %u2013, é importante dizer que esses blocos e seus representantes nunca se furtaram ao diálogo com o poder público. É uma imagem falsa e isso me parece claro. Afinal, a preocupação desse carnaval sempre foi celebrar de forma intensa a nossa vida em comum, digo, viver a nossa cidade em sua integridade. Somos da rua. Sempre requerimos ao poder público o direito básico de garantia da boa condução da vida pública: com limpeza das vias, segurança, administração do trânsito e respeito aos processos orgânicos que engendram a festa por aqui. Nada que fosse muito além disso. Hoje, com as ruas tomadas, diz-se muito e em todos os lugares sobre a necessidade do diálogo, mas vale lembrar: diálogo é uma relação entre iguais e, até onde entendemos, a violência das bombas de gás, as proibições arbitrárias, as ameaças de limitação de livre manifestação e o monopólio comercial de marcas de bebidas em espaços públicos, convenhamos, não foram formas muito acertadas de diálogo. Nesse sentido, é importante dizer: o carnaval já acabou algumas vezes por aqui. A primeira vez que colocamos o pé na rua com um bloco de carnaval, ainda em 2009, foi espantosa a felicidade com que as pessoas chegavam às janelas para saudar aquele retorno. Estava tão claro: como diz a canção, era a saudade que nos levava pelo braço. Afinal, há certas coisas que não se apagam do coração de uma cidade, seu gosto pela liberdade por exemplo. A pergunta que transbordava dali era: %u201CComo foi possível esconder essa festa durante tanto tempo?%u201D. É importante constatar, portanto, que essa espécie de história inaudita do carnaval pertence a uma memória periférica de BH, uma história que, não em vão, só pôde sobreviver fora dos limites dos planos formais de cidade e talvez por isso alimente hoje a festa como um todo. Sabemos bem, BH viveu felizes dias de carnaval ao longo de sua história, em suas saudosas escolas de samba que surgiam a cada ano na Pedreira Prado Lopes, Concórdia, Lagoinha, Cidade Jardim. Nos blocos caricatos. Os blocos pé no chão. Ao final dos anos 1980, iniciou-se um triste revés do festejo, em grande medida orquestrado também pelo poder público e sua triste mania em fazer perpetuar exclamações cerceadoras de cidade. Sua má gerência foi fatal. A festa quase não suportou os tantos e tão nefastos golpes à memória dessa cidade, como, por exemplo, a remoção de diversas vilas do plano urbano %u2013 das quais a Vila do Marmiteiros talvez seja o mais bem-acabado dos exemplos %u2013, ou ainda a destruição da mitológica Praça Vaz de Melo, no Bairro Lagoinha, que cedeu espaço a um tenebroso complexo viário ainda em 1981, e que é hoje uma triste lembrança que ilumina esse nosso tempo, onde viadutos são erguidos de forma tão sombria que se tornam perigosas ruínas antes mesmo de ser concluídos. Foi e ainda vai ser preciso muito chão, muita rua, muita alegria tirada não sei bem de onde para levantar bem alto os nossos estandartes e seguir entoando ainda mais alto esses nossos cantos, sim, de liberdade. As últimas declarações do poder público sobre %u201Climitar o número de blocos%u201D e %u201Ccriar circuitos%u201D em muito pouco se diferem lá do início, quando esses mesmos seguiram tentando por tanto tempo sufocar o carnaval aqui. Ou, ainda, parecem-se com aquela tentativa obscura de limitar horizontes mais aventureiros e transformadores de uma cidade. Em outras palavras, é mais uma fantasia ruim da mercantilização da festa, que começa a demonstrar sua face impiedosa, por exemplo, em Ouro Preto. A cidade histórica, conduzida pelo mesmos jargões do turismo e do mercado, teve seu carnaval tristemente cedido a patrocínios oficiais e já começa a perder fôlego. Por aqui, o prefeito exige, pela imprensa, que %u201Cnão se fale mais de carnaval%u201D, mas seguiremos falando. É importante seguir escrevendo sobre e sob a nossa cidade. É importante saber que essa escrita desvela muita coisa. O que está em jogo hoje de alguma forma é a pergunta sobre que cidade queremos. Que história futura poderemos intuir desse nosso viver? Qual o léxico que deixaremos? Que exclamação conferiremos, enfim, a esse nosso novo horizonte utópico em plena festa? Guto Borges é folião

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