Na mira de ADOLF

Os diários da aristocrata russa Marie Vassiltchikov oferecem um panorma eletrizante dos bastidores da Segunda Guerra Mundial. Livro revela o desmoronamento da %u201Cvelha Europa%u201D

por 28/02/2015 00:13
Arquivo O Cruzeiro
Arquivo O Cruzeiro (foto: Arquivo O Cruzeiro)
Marcos Guterman



As duas grandes guerras do século 20 marcaram, no imaginário europeu, a ruína do mundo aristocrático. Não foram apenas os impérios que se desintegraram, mas todo um modo de vida, atropelado pela modernidade tecnológica e por valores estranhos ao romantismo cavalheiresco e aos princípios de honra e tradição. Essa ruptura está registrada de modo magistral nos Diários de Berlim, escritos por Marie Vassiltchikov, uma jovem aristocrata russa exilada na capital alemã durante a Segunda Guerra Mundial.

Em meio à escalada hitlerista rumo à guerra e no calor dos bombardeios aliados sobre a Alemanha, Marie, ou Missie, como era chamada por amigos e familiares, descreve minuciosamente suas frustrações e desencantos, além da crescente privação a que ela e seus conhecidos foram sendo submetidos, levando-a a reflexões preciosas sobre as transformações drásticas de uma Europa que, da noite para o dia, pareceu entregue à completa barbárie.

A ascensão da ralé na Alemanha, fenômeno que culminou com a chegada dos nazistas ao poder e que está nas entrelinhas do texto, já havia sido explorada pela literatura do país nas primeiras décadas do século – Berlin Alexanderplatz (1929), de Döblin, talvez seja o melhor exemplo. Mas o que Missie narra tem outro efeito, pois sabemos que se trata de um relato em “tempo real”: ela escreve no dia em que vive os fatos, e o faz de modo compulsivo, como diz, na introdução do texto, seu irmão Georgie, responsável pela edição dos diários.

URGÊNCIA

Missie parece pressentir que algo está mudando de forma acelerada, e entende que o registro desse momento é urgente. Não se deve procurar nos Diários de Berlim alguma preocupação com o destino dos judeus e de outras vítimas inocentes do nazismo, pois Missie mal fala deles. Ela está muito mais interessada em descrever as próprias dificuldades e as de seus amigos e parentes, sempre no âmbito da demolição dos alicerces da velha ordem aristocrática. Por essa razão, ao comentar as suntuosas festas que ainda eram realizadas em castelos na Alemanha em plena guerra, das quais participou, a autora não deixa de registrar o óbvio contraste com a situação de penúria vivida na maior parte da Europa, mas enfatiza que o universo dos nobres era o único que merecia sua atenção afetiva.

É nesse contexto que se deve compreender suas referências, no diário, à famosa Operação Valquíria, principal complô para matar Hitler, em 1944, do qual participaram alguns dos melhores amigos da autora. Há uma tendência a romantizar a conspiração, porque se tratou de uma das raras tentativas concretas de insurgência contra o nazismo, mas o fato é que havia poucos democratas dignos desse nome entre os conspiradores. Alguns deles, inclusive ferozes antissemitas, queriam mesmo era o resgate da monarquia e participaram do complô apenas para desalojar a canalha nazista do poder.

Na eletrizante narrativa de Missie, que escreveu esse trecho do diário em linguagem cifrada, certamente consciente de que poderia ser usado contra seus amigos, fica claro que o que estava em jogo, para ela, era o restabelecimento do antigo status da nobreza. Não se trata de um juízo de valor, e a leitura do diário mostra que Missie tinha as melhores intenções, mas é evidente que ela via Hitler (ou Adolf, como ela o chama) não apenas como um tirano antidemocrático, mas, principalmente, como aquele que simbolizava a decadência da moral de que a aristocracia europeia se julgava guardiã.

DIÁRIO DE BERLIM 1940/1945

. De Marie Vassiltchikov
. Boitempo
. 475 páginas, R$ 69


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