Batalha ética

Romance de Lina Meruane faz da doença e da degradação do corpo metáforas da guerra travada entre o homem e seus limites. A cegueira de Jorge Luis Borges inspirou a autora chilena

por 28/02/2015 00:13
CBQ/divulgação
CBQ/divulgação (foto: CBQ/divulgação)
Guilherme Sobota

O sangue no olho do título do primeiro livro da escritora chilena Lina Meruane publicado no Brasil não poderia ser mais literal: a protagonista do romance, uma escritora, Lucina, que usa Lina Meruane como pseudônimo, tem o olho encharcado de sangue por complicações decorrentes do diabetes. O que o leitor acompanha em seguida é uma luta intensa e sufocante contra esse inimigo invisível e implacável: a cegueira, que começa a tomar conta da vida da personagem. Mas o livro, publicado por aqui pela Cosac Naify, não para aí: orbitando pela obsessão que a protagonista alimenta pela doença estão o seu marido, um prestativo professor universitário, sua família de classe média alta chilena, e uma Nova York estrangeira que parece não fazer favor nenhum para melhorar a condição bastante difícil da personagem.

“Uma das perguntas que quis colocar no livro é como enfrentamos a enfermidade e a incapacidade que a cegueira produz em uma pessoa que enxerga”, diz Lina Meruane, a de verdade, professora de cultura latino-americana na Universidade de Nova York. “Ou seja, se nos dobramos ou não aos discursos da superioridade da saúde.” Essa batalha ética é um dos principais fios condutores do romance. O problema de saúde acaba resvalando em questões diversas. Em um trecho, logo quando chega ao aeroporto de Santiago, um estranho a aborda e começa a lhe dirigir uma série de questionamentos, que culminam na revelação da “verdade” – “as conexões entre o nosso 11 (de setembro) e o deles”, diz, referindo-se ao golpe de Estado dado por Pinochet em setembro de 1973. “Não é coincidência nem é repetição, disse eu, entediada. Não passa de uma estranha imagem dupla”, registra a narradora.

Em outros momentos, a exploração angustiante da personagem vira uma experiência sexual nova que a escritora cumpre com elegância e desenvoltura, lado a lado com a batalha tênue que está em todo o romance. “Comecei pondo minha língua num canto de suas pálpebras, devagar, e à medida que minha boca se apropriava de seus olhos experimentei um desejo impiedoso de chupá-los inteiros, intensamente, de torná-los meus no céu da boca como se fossem pequenos ovos (...).”

A agitação da Meruane personagem nunca afasta a percepção de se estar diante de uma pessoa (ou uma representação literária) real – tão real quanto possível. Na viagem ao Chile, quando o casal decide ir comer mariscos em uma praia isolada, a personagem pensa sobre o marido – “se lhe fizessem mal eu não estaria lá para ajudá-lo” –, e quando eles chegam ao restaurante e percebem que esqueceram a insulina, ela pensa: “Eu a tinha esquecido por não conseguir vê-la, Ignacio, mas também para testar você”.


Metáforas do corpo

A doença nos olhos é uma experiência pela qual você passou?
A escrita desse romance usa uma experiência própria e logo vai se tornando outra. Então, é e deixa de ser uma experiência própria. Por isso escrevi um romance e não uma memória ou uma autobiografia. A realidade da doença é de Lucina e sua ficcionalização corresponde à outra, a Lina Meruane que assina seus livros. É um jogo de espelhos cegos. Interessava-me usar essa dúvida, essa curiosidade, essa doença, para tensionar a relação entre realidade e ficção e levar o meu leitor imaginário – como um cego, à mão – a remexer nos extremos obscuros a que a trama leva quando se separa do real.

O que a expressão sangue no olho sugere em espanhol?

Não uma vontade pura, mas um desejo de vingança. Penso que o título funciona em ambas as línguas por mais que seja levemente distinto o sentido: apela a uma intensidade, a um impulso muito poderoso.

A protagonista disse em uma conversa com sua professora que só há um escritor cego. Imagino que tenha pensado em Borges, mas há na literatura ocidental certa corrente da literatura da cegueira. Você pensou nessa questão quando escrevia o livro?
Era Borges a figura, com efeito, porque a cegueira de Borges é única. Borges fica cego aos 50 anos, no momento em que começa a ser internacionalmente reconhecido, e fotografado. O rosto de Borges, com a vida perdida, com suas mãos de sábio sobre a bengala, é uma imagem icônica, indelével. É o grande cego da nossa literatura contemporânea. Não que Lucina não saiba de Homero, de Milton, de Joyce. Então, o que ela quer dizer é que o grande, o contemporâneo, o cego terminal que os latino-americanos recordam é Borges. Por isso você adivinha.

Por que você se interessa em escrever sobre o tema da enfermidade?

Terrivelmente interessada, para a minha desgraça (risos). A protagonista de meu romance anterior é também uma mulher enferma, e a minha tese de doutorado trata do impacto da Aids na literatura. Deve ser porque minha primeira escola foi a conversa apaixonada de meus pais, ambos médicos, durante as refeições: tudo o que diziam sobre o corpo, sobre seus males e seus tratamentos complexos, educou minha imaginação e minhas obsessões, foi meu campo semântico mais bem treinado. Mas não é só a materialidade da deterioração corporal ou os processos complexos que significam viver, mas sim os jeitos em que os corpos se metaforizam socialmente e se utilizam politicamente.

Acredito que você faz parte de uma geração de escritores latino-americanos que vivem, estudam e trabalham nos Estados Unidos, não? Como o fato de viver fora de seu país marca a sua literatura?
A maneira que percebo é um pouco distinta da sua. Vejo os escritores do meu tempo se movendo em muitas direções e para destinos distintos. Há um dinamismo não tão simples de ser traçado nem geográfica nem historicamente... Pertenço a uma família de migrantes; está na minha tradição estar inscrita no nomadismo e um tema recorrente quando nos encontramos é... a situação de nossas malas! Há sempre uma maleta ao redor da conversa e também, isso percebi muito depois, em meus romances. Sempre a protagonista está viajando, e a distância lhe permite ver o que deixa de maneira crítica. É como se as protagonistas de meus romances precisassem ver de longe para ver bem.

Lucina não parece aceitar que a enfermidade atente contra sua liberdade ou independência. Essa é uma das forças do livro, a vontade de garantir independência apesar dos obstáculos?

Uma das perguntas que quis colocar neste livro é como enfrentamos a enfermidade e a incapacidade que a cegueira produz numa pessoa que enxerga. Isto é, se nos dobramos ou não aos discursos da superioridade da saúde. Em uma novela anterior, a resposta era se opor à ideia da recuperação, resistir aos imperativos da medicina. Em Sangue no olho pensei o contrário: Lucina decide que, seja como for, não vai perder o olho, e isso a leva a extremos sinistros que nos permitem observar, espero, como o imperativo da saúde, levado à sua máxima expressão, pode ir contra a ética... Creio que isso é o que dá força ao romance, essa tensão, esse porvir.

Precisamente, todo o romance está imerso em debates éticos. Qual é o limite ético da literatura?

Queria dizer algo que fosse muito ético, mas lamentavelmente não vejo limites éticos dentro da literatura. Se quisermos ver cara a cara a monstruosidade que somos, há que se mostrar precisamente esses lugares onde toda a ética foi perdida, há que insistir nessas zonas escuras, ambíguas, remexer nesses limites incômodos, às vezes intoleráveis. Talvez aí se possa extrair, por oposição, uma ética, e um escritor ou escritora esperaria que essa tarefa cumpram os leitores: a de reagir ante o que se lê, a de refletir de maneira mais complexa sobre o que se coloca, a de se propor a participar eticamente, desde essa terrível claridade, do cenário social.


SANGUE NO OLHO

• De Lina Meruane
• Cosac Naify
• 192 páginas
• R$ 34,90

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