O inferno de Ladydi

Livro de Jennifer Clement aborda o roubo de mulheres no México, problema agravado pelo avanço do tráfico de drogas. Mães criam garotas como meninos para protegê-las

por 14/02/2015 00:13
Warwick.AC/reprodução
None (foto: Warwick.AC/reprodução)
Maria Fernanda Rodrigues

Assim como tantas outras meninas da região rural do estado mexicano de Guerrero, Ladydi nasceu menino. “Graças a Deus, nasceu um menino”, repetia a mãe a vizinhos. Seu cabelo era mantido curto, os dentes eram pintados de preto. “A melhor coisa que você pode fazer no México é ser uma menina feia”, a garota ouviu, aos 5 anos, da mãe – mulher abandonada pelo marido, solitária e alcoólatra, mas extremamente forte e protetora. Era assim com ela, e com todos os outros meninos que se transformavam em menina por volta dos 11 anos. Era assim por sobrevivência.

Ladydi é a narradora de Reze pelas mulheres roubadas, de Jennifer Clement, que nos leva ao universo dessas meninas criadas como meninos, que se escondem em buracos cavados no quintal ou entre a geladeira e a parede falsa ao menor sinal de que uma caminhonete preta com homens armados se aproxima. Ninguém quer ser levada, transformada em escrava sexual de traficante. Mas isso ocorreu com Paula, a vizinha linda. Como na vida real.

“Roubos de mulheres existem desde sempre. Até na Revolução Mexicana elas se escondiam em buracos para não serem levadas ou estupradas. Os números estão aumentando por causa do tráfico de drogas”, adverte Jennifer Clement.

Nascida no México em 1960, filha de pais americanos e mãe de um menino e de uma menina, a escritora fala sobre sua brutal história de amor, resiliência e solidariedade, escrita com graça e humor, que se passa entre a montanha e suas plantações de milho, maconha e papoula, a turística Acapulco e um presídio, para onde Ladydi vai depois de uma reviravolta no enredo.


“As imagens são reais”


Por que contar esta história?

Antes de tudo, interessam-me a linguagem e a forma, a estrutura do enredo, o personagem e a voz. Também estou sempre procurando por experiência poética e pensando em como o divino coexiste com o profano, a beleza com a feiura. Queria que o romance tivesse um encantamento. No livro, muitas das imagens fortes são reais. As cenas iniciais, de enfeiar as meninas e do esconderijo em buracos, chegaram pra mim por alguém que conheci na Cidade do México. Ela me contou sobre o sequestro de mulheres em sua terra, Guerrero. Não consegui dormir aquela noite. E foi assim que nasceu este romance. A voz de Ladydi me apareceu e me segurou firme. Ela é feia e frágil, nada sentimental ou julgadora.

Como foi a pesquisa?

Por mais de 10 anos, conversei com mulheres afetadas pela violência mexicana, porque queria escrever sobre mulheres dentro do narcotráfico. Era um passo lógico, já que tinha acabado de escrever A true story based on lies, sobre maus-tratos a trabalhadores. Entrevistei namoradas, mulheres e filhas de traficantes e logo percebi que o país é uma toca de mulheres escondidas. Elas se escondem em lugares que se parecem com mercearias por fora, mas que são verdadeiros esconderijos, no porão de conventos, em hotéis alugados pelo governo dentro do surreal conceito de proteção à testemunha. No México rural, famílias pobres usam os buracos. Fui ao presídio feminino Santa Marta. Vi vidas cruéis e afetuosas. Vi desenhos de conchas, areia e peixe feitos por uma senhora de 70 anos que vendia tacos na praia antes de ser obrigada a levar drogas para os Estados Unidos. Ela me disse que roubava saleiros na prisão e passava na pele para não se esquecer do mar. Por anos, ouvi e li coisas do tipo: ‘Hoje ela faria 16 anos, ela nunca ligou, se for à polícia, vão rir de mim’. Uma mulher pode ser vendida várias vezes por dia e para diferentes donos, enquanto um saco plástico com droga só é vendido uma vez.

O que ouviu de mais absurdo?

Uma mãe que teve a filha raptada falou: ‘Disse pra ela não usar batom’.

E o que foi mais tocante?

Ver que presas recebem menos visitas do que presos.

Fala-se sobre isso no México ou é uma ameaça silenciosa?
A cobertura é pequena. O efeito da violência nas mulheres deve ser mais discutido.

O caso dos 43 estudantes sequestrados em Guerrero foi amplamente divulgado, ao contrário da história das meninas. Por que o tratamento diferente? O fato de esse desaparecimento ter alcançado os noticiários internacionais é indício de que nada mais pode ser escondido por muito tempo?

Publicidade gera pressão, e isso é bom. A divulgação envergonha o governo mexicano e a vergonha é uma grande força de mudança. Penso que é mais fácil para o mundo focar um único evento do que um problema constante. De forma geral, o governo do México não se interessa pela condição da mulher. Isso ocorre ainda hoje em muitos outros países: elas simplesmente não são importantes. Se dermos valor ao que está sendo roubado, as coisas podem mudar. Seria uma afronta se carros estivessem sendo roubados.

Por que a senhora optou pela ficção?
Porque a voz de Ladydi García Martínez apareceu para mim como uma visita. Tinha que deixá-la falar. Minha esperança é que tanto a dor quanto o humor corajoso da minha protagonista sejam ouvidos. Não porque esta é uma voz para a qual os noticiários e o governo não têm tempo, mas porque ela representa uma história sobre o sofrimento diário de milhares de garotas raptadas e de experiências de famílias ao redor do mundo.

Como escritora, sente que tem uma missão? A literatura pode melhorar o mundo?

A ficção tem um certo poder que o jornalismo não tem. Ela pode dar voz a pessoas silenciosas ou silenciadas. E acredito que a literatura pode mudar o mundo. Oliver Twist, por exemplo, mudou as leis sobre o trabalho infantil. Em muitos casos, romances me modificaram mais do que experiências que vivi.

A senhora foi ameaçada durante o processo de pesquisa e escrita?
Alguns incidentes ocorreram quando fui presidente do PEN México e abordei questões como o assassinato e desaparecimento de jornalistas.

Alguma vez sentiu medo de viver no país?
Não é seguro ser um jornalista no México, então não há liberdade ou segurança. Sem imprensa livre, não pode haver democracia. Há áreas no país onde ninguém mais pode ir.

Como é criar uma filha nessas circunstâncias?
É amedrontador para todas as mães, e também escrevo a partir do ponto de vista de ser uma mãe nessa terra. No México moderno, ainda há estados em que a punição por roubar uma vaca é mais severa do que por raptar uma mulher.



REZE PELAS MULHERES ROUBADAS

• De Jennifer Clement
• Rocco, 240 páginas
R$ 39,50 e R$ 25,50 (e-book)

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