Compromisso histórico

Um país realmente democrático deve enfrentar o racismo, o machismo e a homofobia

por 07/02/2015 00:13
Edufscar/reprodução
Edufscar/reprodução (foto: Edufscar/reprodução)
Walter Sebastião

O professor e historiador James Green fala abertamente sobre sua participação no movimento em defesa de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, repudia a tortura, a repressão e o preconceito e reafirma a importância da luta das associações LGBTs. Green defende uma nova forma de pensar a sociedade. “Qualquer país é democrático (ou cada vez mais democrático) à medida que há tolerância e aceitação dos comportamentos e da maneira de viver que historicamente foram marginalizados”, adverte o organizador do livro Ditadura e homossexualidades – Repressão, resistência e busca da verdade (Edufscar). “Temos que recuperar a história de muitos gays e lésbicas pioneiros, que, de uma maneira ou outra, desafiaram a sociedade com uma nova forma de pensar”, afirma Green.

Você poderia falar sobre a origem do livro?
O volume surgiu como parte do projeto de incluir dentro do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) informação sobre a situação de gays, lésbicas e travestis durante a ditadura. Achávamos fundamental participar no processo de denunciar a tortura, a repressão, as mortes e os desaparecidos que estavam na primeira linha de resistência e oposição à ditadura, mas consideramos importante ampliar o conceito da repressão durante o período do regime autoritário. A falta de democracia, a censura e o controle social afetavam gays, lésbicas e travestis no Brasil, particularmente no momento quando apareceram novas ideias sobre a homossexualidade e uma politização internacional de questões relacionadas ao comportamento à sexualidade. Nesse sentido, o livro oferece vários recortes sobre o período para entender como as lésbicas, gays e travestis viveram este período e como resistiram à repressão do Estado e de uma sociedade conservadora, em grande parte incentivada pelo próprio regime militar.

O que o você espera, com relação ao tema LGBT, da Comissão Nacional da Verdade (CNV)?
Dentro do relatório final da CNV está colocada uma proposta nossa para o fim de qualquer regulamentação que discrimine os homossexuais dentro das Forças Armadas. Em vez de abraçar o relatório como um todo, setores do Exército se queixaram das revelações sobre as violações cometidas pelas Forças Armadas e outros agentes do Estado durante a ditadura. Ao mesmo tempo, quando se discutiam as possibilidades de uma nova legislação para eliminar a discriminação por orientação, vários generais declararam que era impossível deixar homossexuais servirem no Exército. Fizemos esta luta nos EUA e ganhamos a batalha. Hoje em dia, gays e lésbicas podem servir abertamente nas Forças Armadas norte-americanas e elas não se dissolveram por isso. Ou seja, não vamos acabar com os legados antidemocráticos da ditadura militar se não eliminarmos todas as formas de discriminação que foram reforçadas durante este período de exceção.

Qual a mensagem dos movimentos LGBTs para a sociedade?
Você pode analisar uma sociedade pelo tratamento dado às suas mulheres. Acho que o mesmo critério vale para os homossexuais, ou seja, qualquer país é democrático (ou cada vez mais democrático) à medida que há uma tolerância e uma aceitação dos comportamentos e da maneira de viver que historicamente foram marginalizados. Uma sociedade tolerante às diferenças é uma sociedade que enfrentou o racismo, o machismo, a homofobia. É difícil acreditar que as liberdades democráticas realmente estão consolidadas num determinado país se os gays, as lésbicas e os travestis ainda são marginalizados. O movimento LGBT surgiu no fim dos anos 1970 como parte da promessa de uma sociedade mais democrática depois do fim da ditadura. E, infelizmente, a luta não acabou.

Como você iniciou suas pesquisas sobre a história das comunidades LGBTs?
Cheguei ao Brasil em agosto de 1976, já com uma experiência rica de participação no movimento LGBT americano, primeiro na Filadélfia, onde assumi a minha homossexualidade, e em São Francisco, onde participava ativamente do movimento LGBT. O país estava vivendo o começo da abertura e notava-se um sentimento de novas possibilidades no ar. Porém, ainda era difícil imaginar um movimento LGBT no Brasil. A partir de 1978, a situação mudou bastante e participei da fundação do Grupo de Afirmação Homossexual em São Paulo (Somos). Participei ativamente dentro do grupo incentivando ligações com o movimento feminista, negro e sindical. Foi a primeira tentativa de fazer um trabalho LGBT dentro do movimento sindical e entre a classe trabalhadora. Depois voltei para os Estados Unidos e anos mais tarde resolvi fazer o doutorado em história da América Latina, quando escrevi o meu primeiro livro, Além do carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX, publicado em 2000 pela Editora da Unesp.

Com relação ao tema, o que já está bem estudado e o que falta pesquisar melhor?
Acho que temos que recuperar a história de muitos gays e lésbicas pioneiros, que, de uma maneira ou outra, desafiaram a sociedade com uma nova forma de pensar. Por exemplo, atualmente estou terminando uma biografia de Herbert Eustáquio de Carvalho, conhecido como Herbert Daniel, mineiro, estudante de medicina (entrou na Faculdade de Medicina, em Belo Horizonte, em 1965), militante do movimento estudantil, que diante desse processo descobriu a sua homossexualidade. Na época, ele não encontrava espaço dentro da esquerda para revelar abertamente a sua sexualidade, então optou por reprimir os seus sentimentos para poder participar do movimento revolucionário. No seu caso, entrou na mesma organização da presidente Dilma Rousseff, em Belo Horizonte. Depois, foi obrigado a fugir para o Rio de Janeiro, onde também participou do sequestro dos embaixadores alemão e suíço para liberar 110 presos políticos. No exílio, ele assumiu a sua homossexualidade e cobrou um debate com setores das esquerdas que ainda tinham ideias preconceituosas. Herbert também foi ativista do movimento em defesa das pessoas portadores do vírus da Aids. Ele morreu em 1992, mas deixou um belo legado para todos.

DITADURA E HOMOSSEXUALIDADES REPRESSÃO, RESISTÊNCIA E A BUSCA DA VERDADE
• Organizadores: James Green e Renan Quinalha
• Editora Edufscar
• 332 páginas, R$ 49

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