Vocação para a alegria

No livro O louco de palestra, a jovem paulista Vanessa Barbara mostra talento, bom humor e prova por que é considerada uma das mais interessantes cronistas brasileiras da atualidade

por 07/02/2015 00:13
Acervo pessoal
Acervo pessoal (foto: Acervo pessoal)
André di Bernardi



A crônica, assim como a poesia, não serve para muita coisa. Isso também acontece com a beleza das coisas bobas. Por isso, talvez, por isso mesmo, enfim. A paulista Vanessa Barbara é uma das nossas melhores cronistas. É dela o livro O louco de palestra, lançado recentemente pela Companhia das Letras. Começo as minhas leituras de 2015, portanto, com o pé direito. A crônica, como disse, não carrega finalidades. Mas para que servem alguns acordes de violão? Existem pessoas que tocam trompete, existem pessoas que se sentam ao sol, donas de si mesmas e mais nada. E existem cronistas. Vanessa Barbara é uma delas.

Os textos desse belo livro despertam nas pessoas pequenas alegrias, dores pequenas, mínimas. Ler uma crônica pode transformar o dia mais cinzento, o dia mais turvo. A crônica, diga-se de passagem, não poucas vezes é a melhor parte do jornal, como pode ser a melhor parte do dia. Vanessa Barbara, de 32 anos, cumpre o seu destino, cumpre o seu ofício, com louvor. Ela tem um estilo próprio, apesar da pouca idade. Com delicadeza, com humor (com muito humor) e um bom escárnio, ela produz textos que são quase reportagens, mas sem a objetividade, o cru da chatice que reina e vigora nas informações pasteurizadas, sem molho e sabor.

Em O louco de palestra, estão reunidos alguns dos melhores e mais deliciosos textos da jovem escritora brasileira. Originalmente publicados em jornais (como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo) e revistas (como Piauí), as crônicas mostram os detalhes e o surreal de um prosaico bairro de São Paulo, o Mandaqui. Vanessa ri de seus tipos peculiares e sua animada vida social. Ela embarca e viaja para mostrar o de dentro das linhas de ônibus lotados, faz comentários televisivos, tece observações sobre o urbanismo desmazelado da nossas cidades e – como no caso da crônica que dá nome ao livro – comemora a cristalização de um tipo que sempre existiu, mas que graças às palavras de Vanessa Barbara, alcançou a imortalidade: o “louco de palestra”, aquele sujeito meio abilolado que intervém, comenta e causa em palestras, conferências, debates, colóquios. O texto, publicado na revista Piauí, é hoje um pequeno clássico da nova crônica brasileira.

 “Pode-se dizer, com segurança, que meu caso de amor com o transporte coletivo não é passageiro – com o perdão do trocadilho”, diz ela. Vanessa pega o leitor pela goela, mas num processo paradoxal de delícias e descobertas. É muita coisa, e está em toda parte. Tem gente de todo tipo, no plural, no coletivo, gente alta, baixa, gente muito estranha e gente grotesca. Nada passa despercebido aos olhos de Vanessa Barbara. Ela não foge do necessário e escreve certeiro, sob medida.

A escritora sabe aonde pode chegar: “Queria escrever um texto bonito, algo que a moça das verduras pudesse levar consigo no ônibus após um dia sem couves, e que ela fosse reler de mansinho e recortar para as amigas. Um texto sereno, bonito pra burro, que fizesse marejar os olhos de um velho coronel, por um momento arrependido de nunca ter sido jovem e nem trapezista.”

SEM MAQUIAGEM

Vanessa Barbara fala de coisas simples, fala baixo, diante, dentro das pequenas coisas do dia a dia. É preciso talento e sensibilidade. Vanessa usa e abusa de sua verve, com perspicácia e vocação para a alegria. Ela bebeu nas melhores fontes, de Luis Fernando Verissimo a Rubem Braga, passando por Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade. Bebeu para encontrar o ponto certo, para ser ela mesma, sem artifícios, sem firulas, sem imitações, o que é melhor, e mais difícil, como se sabe. O texto de Vanessa Barbara não é gordo, não é magro. Os textos de Vanessa Barbara vestem passarinhos.

A crônica não tem a pretensão do conto, não chega aos ápices do poema, despreza a chatice do didático. Pois bem. Pois sim. Pode ser. Não existe na crônica a lentidão, a complexidade do romance. A crônica tem a beleza da mulher sem maquiagem, tem a consistência e a verdade de uma criança brincando no parque no mais prosaico dia de sol. Os textos de Vanessa Barbara brincam de roda e carrossel.

Vanessa Barbara parece que escreve descalça, longe do salto alto e das burocracias do estilo. Ela escreve como quem canta de olhos fechados. A crônica tem esse poder. Ela abre uma janela no meio da tarde esquisita. Crônica é sinônimo de recreio, lugar e momento das melhores e mais importantes descobertas. A crônica é a hora do brigadeiro nas enfadonhas festas e aniversários. Vanessa Barbara apenas abre os olhos para contar o que enxerga, o que existe de menos extraordinário, o que está diante de nós, espremido nas lotações, no ordinário das horas comuns. A crônica é um flash, um lampejo de luz, ela é quase sempre sorrateira e a cronista sabe e aproveita da situação. Os textos de Vanessa Barbara, no mais das vezes, mais escondem que mostram, mais sugerem que afirmam.

Despretensiosamente pretensiosas, as crônicas de O louco de palestra carregam grandes responsabilidades, pois, sim, influenciam, de maneira direta, os seus possíveis leitores. Sem pesos. Os textos de Vanessa Barbara, não se iludam com uma aparente fragilidade, divertem e fazem pensar. A escritora flerta e aceita, de peito aberto, o turbilhão que ativa o cotidiano imediato.

O último texto de O louco de palestra chama-se Coisas que restam. O leitor chega ao fim e fica, parado, marejando os olhos, lendo os letreiros, como se estivesse no cinema, assimilando, sentido a pancada da experiência. A cada filme, a cada livro, e o mundo já não é mais o mesmo. Para o fim, o fim; mas, contudo, um tanto de poesia: “São coisas que nos restam: o vazio, a raiva e a tristeza, mas também os chinelos de pano, as pessoas que tocam tuba, as luzes coloridas, o sorvete de manga e os velhos ao sol. Restam-nos as noites rockabilly, as crianças vestidas de Batman, as piscinas aquecidas, os amigos de infância e o centro histórico de Macau – isso sem falar numa barraca de rua que só vende pijamas de flanela.”

Vanessa Barbara nasceu em São Paulo, em 1982. É jornalista, tradutora, cronista e colunista do International New York Times. Publicou O livro amarelo do terminal, em 2008,vencedor do prêmio Jabuti de reportagem, O verão do Chibo, o infantil Endrigo, o romance Noites de alface e, pela Quadrinhos na Cia, a graphic novel A máquina de Goldberg. Foi selecionada pela revista Granta para a edição “Os melhores jovens escritores brasileiros.”

O LOUCO DE PALESTRA E OUTRAS CRÔNICAS URBANAS

. De Vanessa Barbara
. Companhia das Letras, 200 páginas
. R$ 37 e R$ 26 (e-book)

Entrevista


Vanessa Barbara
cronista

Leveza é essencial


Quais são as qualidades que o escritor deve ter para se tornar um bom cronista?

Deve ser observador e bom ouvinte. Deve ser despretensioso e olhar o mundo com leveza, uma característica também essencial para a literatura. O contrário disso pode dar em algo pernóstico, desnecessariamente pomposo, ruim, como esses escritores que se esforçam demais para escrever algo retumbante.

De que maneira a crônica passou a fazer parte da sua vida?

Cresci lendo livros de crônicas do Luis Fernando Verissimo em edições da L&PM que comprava no sebo. Mas o ponto de partida mesmo foi aquela série Para gostar de ler, da Editora Ática, que dedicava um monte de volumes para a crônica. Mais pra frente conheci Rubem Braga e o Drummond cronista.

Você já publicou um romance e também já escreveu para crianças. Em que área da literatura você se sente mais à vontade?
 Quais são seus próximos projetos?
Sinto-me mais à vontade na crônica e no jornalismo literário. No momento, estou me dedicando às crônicas das segundas-feiras no Caderno 2 do Estado de S. Paulo, e aos artigos mensais para o New York Times. Acabo de publicar um romance novo, Operação impensável, pela Biblioteca Pública do Paraná. Ano passado, ganhei o Prêmio de Literatura da biblioteca. No meio do ano, o livro será lançado por uma editora comercial.

Muitas de suas crônicas são muito engraçadas, de um humor fino, elegante. Qual a importância desse lado, digamos, alegre e luminoso nos seus textos?
 
É preciso ter um erro de paralaxe permanente ao ver o mundo, concentrando-se sempre em detalhes bobos ou reações pequenas – aquela coisinha lá no fundo da foto que ninguém ainda reparou. Isso em qualquer situação: quando vou ao mercado, por exemplo, presto atenção num velhinho que anda de galochas e compra cinco embalagens de mortadela. No sábado à noite, me interessam as pessoas que saem de flanela para comprar salsichas. Não consigo enxergar as coisas de outra forma, ainda que, no fundo, eu seja bastante pessimista.

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