A pantera do samba

Livro de Eduardo Logullo relembra a trajetória de Aracy de Almeida. Mulher à frente de seu tempo, a carioca é uma das personalidades mais marcantes da música popular brasileira

por 07/02/2015 00:13
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Ângela Faria

Aracy de Almeida morreu aos 73 anos. Foi-se em 1988, mas continua à frente do nosso tempo. Cantora sem igual, protofeminista em sua independência atávica e voz da autêntica malandragem, a moça nascida no Bairro do Encantado, no subúrbio carioca, implodiu todos os clichês que tentaram lhe impingir. E olha que não foram poucos: sapatona, ranzinza, desbocada e feiosa, para dizer o mínimo.

Graças a ela – fiel intérprete e amiga de Noel Rosa –, a obra do gênio da Vila Isabel cruzou o século 20. Depois da morte do compositor aos 26 anos, em 1937, coube a Aracy não deixar o Brasil esquecê-lo. Insistiu em gravá-lo nas décadas de 1940 e 1950, manteve o autor de Feitiço da Vila e Três apitos na boca (e no coração) do povo.

Ela pagou um pouco caro por isso: nunca deram a atenção merecida a seu repertório “off Noel”. Aliás, nos anos 1950, a determinada Aracy chegou a publicar um manifesto no jornal carioca O Semanário advogando o direito de interpretar também as composições de Bororó, Fernando Lobo e Antonio Maria. E ironizou: “Me deixem cantar as músicas do MEU repertório... Deixa seu palpite infeliz pra lá, este é o meu último desejo, senão jogo um feitiço nessa vila, hein?”.

Diz a lenda que Amélia (a de verdade, mesmo) chegou a Ataulfo Alves e Mário Lago graças a Aracy. Quando a ouvimos cantar Eu não sou manivela, do mineiro Ary Barroso, fica evidente: ela sempre foi muito mais do que a “voz feminina de Noel”.

O jornalista, escritor e roteirista Eduardo Logullo acaba de mandar para as livrarias Aracy de Almeida – Não tem tradução (Editora Veneta). A “biografia polifônica” faz jus à artista que Maria Bethânia definiu tão bem: “Para ela não tem passado ou futuro”.

Em vez de optar por um relato historicista, o autor nos apresenta o que chama de “bagunça animada”. Relembra casos e causos, reproduz trechos de entrevistas, colhe depoimentos de colegas sobre a importância de Aracy. Textos e informações vieram de Hermínio Bello de Carvalho, Sérgio Cabral, João Máximo, João Antônio, Ruy Castro e Eneida, entre outros pesquisadores de nossa música e da vida da cantora.

PIONEIRA O livro de Logullo não está entre aquelas homenagens póstumas e passadistas ao legado de grandes artistas. Definitivamente, Aracy de Almeida não combina com naftalina. Pioneira, ela financiou o primeiro ateliê de Denner (sim, a Dama do Encantado era fashion, usava roupas do badalado estilista); era companheira de copo e de cruz de Noel, de Antônio Maria e Ary Barroso. O mineiro, aliás, escolheu-a para lançar Aquarela do Brasil – a faixa só não foi gravada por vacilo do gringo que mandava na gravadora Victor.

Amiga de Madame Satã e de Candido Portinari, Aracy frequentava de copos-sujos da Lapa, zona proibida às moças de bem, ao palco mítico do Zicartola, passando por boates chiques cariocas como a Zum-Zum e pelo aclamado teatro paulistano Cacilda Becker. Papa do high society, o colunista Ibrahim Sued (a quem ela chamou de “fajuto” durante uma entrevista concedida ao próprio na TV) apelidou-a de “pantera do samba”.

Definitivamente, é até covardia reduzir Aracy a satélite de Noel Rosa ou a jurada ranzinza dos programas de TV de Chacrinha e Silvio Santos, que a tornaram popular nos anos 1970/1980. Logullo lembra que Caetano compôs A voz do morto para ela. “Eu canto com o mundo que roda/ Eu e o Paulinho da Viola/ Eu e o Paulinho da Viola!/ Eu canto com o mundo que roda/ Mesmo do lado de fora”, dizem os versos escritos em 1968, época em que tanto o baiano quanto o príncipe do samba eram apenas talentos promissores. Resumindo: a veterana Araca, que esculachou a bossa nova, estava “colada” nos tropicalistas. Até formou um quarteto com os jovens Jorge Ben, Toquinho e Paulinho da Viola para fazer show com nome pra lá de apropriado: Que maravilha.

LOTAÇÃO Nascida Araci Telles de Almeida (o y surgiu porque era letra mais bacana), criada em rígida família batista e desde os 15 anos na boemia (Noel a levava para casa, de lotação, de madrugada), ela sempre morou no subúrbio do Encantado. As paredes de sua casa eram lotadas de quadros de Aldemir Martins, Di Cavalcanti, Djanira, Antônio Bandeira e de Clovis Graciliano, entre outros. Mário de Andrade adorava o seu canto. Paulo Mendes Campos escreveu que Aracy deu vida à linguagem popular tão própria do Rio de Janeiro.

Frasista de primeira, a cantora cravou algumas das gírias mais divertidas de sua época. Quem não se lembra de ela chamando calouro de matusquela nos programas de TV? Suas tiradas fizeram história. “MPB-4? Esse nome é muito esquisito, ô Machado. Isso tá parecendo prefixo de trem da Central”, disse a Carlos Machado. “Pra que reportagem? Deixa isso pra lá que eu não gosto de emboança. Homenagem e vela pra defunto vivo é mau agouro”, declarou à revista Fatos e Fotos. “Escuta, vocês aqui não servem comida que produza bosta? Só vai ter isto, meu filho?”, perguntou ao garçom que servia frugais canapés durante uma recepção na casa do político Adhemar de Barros.

FACA NA BARRIGA Vascaína, palmeirense e por algum tempo, nos anos 1930, mulher de José Fontana, goleiro do Vasco da Gama, Aracy e sua vida sexual renderam fartas doses de fofocas e folclore. Nos tempos em que mulher “de bem”, no máximo, chegava a professora, e artista de rádio era malfalada (para dizer o mínimo), ela encarava o disse me disse com proverbial sinceridade. Passou perrengues: certa vez, gravou uma canção com a faca de Kid Pepe encostada na barriga. Foi o jeito que ele encontrou para obrigá-la a registrar a sua O que tem Iaiá.

Conhecida como Dama do Encantado, era fornecedora de piadas para Carmen Miranda. Já madura, andava de botas (devido a um problema nos pés). Diz a lenda que usava cuecas. Elza Soares revelou tê-la visto de ceroulas no famoso “avião do covardes”, o trem noturno da Central que ligava o Rio de Janeiro a São Paulo, usado por quem temia voar.

Chamada de “meu pai” por Tico Terpins, músico da banda punk-rock Joelho de Porco, Araca deu um esculacho em Zé Rodrix quando ele se insinuou como o quinto “filho”. “Sou pai de quatro, ô rumbeiro”, espinafrou. Mas depois de um belo show no Lira Paulistana, “papai” capitulou diante do empenho do rapaz naquela noite. “Ô, rumbeiro, valeu! De hoje em diante, pode me chamar de tio. E olhe lá...”, contemporizou.

Ranzinza de maus-bofes? Não era isso que Antonio Maria pensava dela. A amiga o acolhia em seu lar suburbano, mimava-o com banho quente, jantar e cama “com ventilador em cima do corpo”. Tratava seus cachorrinhos como filhos.

Agora, casamento era “uma onda bastante enrolada” para Araca: flores no começo, espinhos no final. Hermínio Bello de Carvalho classificava a amiga como pansexual. “Amo qualquer um, homem, mulher, bicho, coisa. Dura um dia, um mês. Dura quanto durar”, registrou ele no livro Arquiduquesa do Encantado.

Magrela na juventude, feiosa na maturidade, Aracy não se acanhava em não ter atributos físicos de colegas como Carmen Miranda ou Marília Baptista. Bullying? Ela se orgulhava de seus encantos. Costumava levantar a blusa em botequins para exibir os seios, belíssimos segundo amigos e testemunhas. Lá pelos anos 1940, ela até venceu “concurso” de seios promovido pela Turma dos Cafajestes durante uma festa com “cocadinhas” cariocas...

Justiça seja feita. O topless de Araca veio muito antes de Cássia Eller mostrar os peitos no Rock in Rio. E de Gal e Bethânia, sem sutiã, causarem frisson nas capas de seus discos. “Sou atual, estou na minha, sou griladona, estou cheia de transas e tal”, dizia. A Dama do Encantado sabia ser pop, mas à sua maneira.

ARACY DE ALMEIDA – NÃO TEM TRADUÇÃO

• De Eduardo Logullo
• Editora Veneta
• 214 páginas, R$ 34,90

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