Língua híbrida

por 24/01/2015 00:13
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W. Commons/reprodução (foto: W. Commons/reprodução)
Vanessa Aquino



A mescla de gêneros e dos discursos crítico e ficcional é uma constante na obra do escritor catalão Enrique Vila-Matas. A chamada literatura híbrida ganha contornos expressivos na literatura contemporânea e começa a ser tratada com mais cuidado por pesquisadores e críticos devido a características como a intertextualidade e a comparação. A poética intertextual de Vila-Matas se destaca como tema de pesquisa acadêmica, além de formar novos autores e de tratar questões como o vazio, o silêncio, o destino, a essência da literatura e a experiência da escrita.

De acordo com o autor, experimentações literárias focadas no hibridismo têm aparecido com maior frequência em recentes publicações, embora o “novo gênero” exista há séculos, inaugurado, provavelmente, pelo romance Tristram Shandy, de Laurence Sterne. Dos autores contemporâneos que unem ficção, ensaio e autobiografia, ele destaca os mexicanos Sergio Pitol e Valeria Luiselli; o alemão W.G. Sebald; os italianos Roberto Calasso e Claudio Magris; o espanhol Menéndez Salmón; o argentino Juan José Becerra; e o chileno Alejandro Zambra. Sebald, Pitol e Calasso, aliás, compõem a trindade fundamental ao catalão.

Vila-Matas suspeita ter herdeiros e escreveu sobre isso em Sucessores de Vok, em 2010. O narrador se declara herdeiro de Vilém Vok, descreve o encontro com alguém que se apresenta disposto a servi-lo, insiste para que termine obra sobre Vok e se propõe a fazê-lo em seu lugar, como um verdadeiro discípulo.

O escritor catalão, no entanto, declina da responsabilidade de inventar o artifício do intertexto e da metaliteratura. “Metaliteratura é Dom Quixote, sem ir mais longe. Não fiz nada que antes Cervantes não tenha feito”, avisa ele.

AUSÊNCIA

Um dos eixos centrais da obra de Enrique Vila-Matas é o desaparecimento. No conto “A arte de desaparecer”, por exemplo, o personagem Anatol sofre ao ver um de seus romances, que havia guardado no baú, publicado. Nesse ponto, entra em cena o hibridismo, com a inserção de um ensaio ancorado na história do personagem. Seduzido pelas possíveis benesses da glória literária, em contraposição ao tédio e ao anonimato de sua recém-chegada aposentadoria, o “escritor secreto” permite que um editor publique suas obras. Contudo, logo é tomado por arrependimento e foge. Esse conto, acredita Vila-Matas, seria a origem do tema em sua obra, assunto que desenvolveria com ainda mais força em Doutor Pasavento, romance publicado em 2005.

A rotina e os desafios do escritor são assuntos recorrentes nos textos híbridos do autor catalão. No novo romance Kassel não convida à lógica – lançado em 2014 na Espanha, França e Portugal –, Vila-Matas relata o caso de um escritor que tem a rotina interrompida por uma ligação telefônica. Enigmática voz feminina fala de um convite para jantar a fim de ajudar a solucionar um grande mistério do universo. O personagem percebe, porém, que se trata da convocação para participar de uma mítica feira de arte contemporânea em Kassel, na Alemanha. O escritor-protagonista se coloca a escrever, dia após dia, algo muito caro ao próprio Vila-Matas: uma grande obra que não desapareça com o tempo.

“A glória me faz rir”

O que o senhor tem lido? Acompanha a produção de jovens autores?
Tenho lido de tudo. Muitos jovens. Um escritor é jovem não pela idade, mas sim pelo espírito. Há muitos bons e jovens escritores de idade no Brasil: Xerxenesky y Emilio Fraia, Vanessa Barbara, Carol Bensimon, Miguel Del Castillo, J. P. Cuenca, Antonio Prata, Carola Saavedra, Tatiana Salem, Laura Erber...

Em que consiste a arte de desaparecer e por que o desaparecimento do escritor é tão recorrente na sua obra?
Tenho interesse pelas pessoas que, de noite, vão embora sem se despedir. Tenho interesse por aqueles que sabem que a essência da literatura é o desaparecimento. É uma frase de Blanchot que não me deixa dormir.

Por que muitas situações nos fazem crer que a glória do autor é o oposto da essência da sua literatura?
Um autor que busque a glória me faz rir. Buscam-se outras coisas, mas, por favor, a glória… Mas sabemos que há gente para tudo. Há escritores que, quando nascem, já existe um pedestal preparado para eles. É bom que te conheçam, mas é muito ruim que te conheçam muito.

Escrever é uma catarse?
Não. Estou muito bem. Não preciso que ninguém me ajude, muito menos a senhora literatura.

Como definiria os papéis do escritor e do leitor?
O escritor e o leitor são pessoas integradas à grande experiência interior que resulta em combinar 26 signos alfabéticos. Como leitor, considero-me um monstro delicado.

Qual dos seus personagens está mais próximo do senhor?
Todos. Montano, Pasavento, Vilnius, os batlebys, os shandys, os exploradores do abismo, os suicidas exemplares, o jovem Vila-Matas que morou em Paris, o editor Riba.

A ficção é uma maneira de chegar à verdade?
Sem dúvida. É a melhor forma de chegar a verdades parciais, uma vez que a Verdade com letra maiúscula é somente uma figura retórica e serve somente para lavar mãos em Jerusalém.

As falsas lembranças podem ser consideradas lembranças da ficção?
Chamo-as de “lembranças inventadas”, são lembranças reais.

A realidade inventada interfere na realidade?
Sem dúvida. Dizem que meu tio-avô matou o arquiteto Gaudí e vem gente de Barcelona para me perguntar detalhes do assassinato.

Com quais cânones o senhor trabalha com mais intensidade?
Varia em cada novo livro. Sou portátil até nisso.

Como funciona a produção literária contemporânea na América Latina? Tem observado as tendências?
Há autores extraordinários, sigo-os muito de perto. Não dou nomes para evitar exclusões não desejadas.

Neste momento, o senhor está trabalhando em um novo romance?
Faço um livro para a minha editora francesa em torno da figura da artista Dominique Gonzalez-Foerster.

. Enrique Vila-Matas defende a mistura de gêneros na literatura contemporânea e reforça a necessidade de uma ficção que promova a mixagem de autobiografia e ensaio

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