Rolezinho na Zona Norte

Desabafo de Mano Brown em Venda Nova e o novo disco do grupo Racionais MCs, a voz anticordial da cultura brasileira, expressam a complexidade do Brasil contemporâneo

por 24/01/2015 00:13
Marcelo Pretto/divulgação
Marcelo Pretto/divulgação (foto: Marcelo Pretto/divulgação)
Daniel Camargos



Alguns detalhes da apresentação do grupo de rap Racionais MCs no Bailão Venda Nova, na semana passada, levam a uma reflexão sobre a política. Foi o primeiro show deste ano da banda, e o local escolhido deixou os rappers à vontade diante do público. Como eles disseram, estavam na quebrada com aqueles a quem chamam de manos. O ambiente cordial pode ter sido um dos motivos para Mano Brown vociferar contra o Partido dos Trabalhadores entre um rap e outro. “Quero que o PT se foda”, berrou. Foi aplaudido pelos fãs que lotaram o Bailão.

Brown tem sido eleitor fiel do PT. No palco em Venda Nova, disse que alguns manos o estavam acusando de ser lobista do partido. Em seguida, soltou o palavrão. O grito de Brown ainda está distante do discurso raivoso daqueles músicos que marcham de mãos dadas com a direita e proferem palavras de ódio, como Lobão e Roger. Até porque, o líder do Racionais declarou voto em Lula e Dilma. Fez campanha para Lula, com intensidade, e para a atual presidente, mais discretamente.

De quebrada em quebrada nas turnês pelo Brasil, Brown e Racionais viram o tanto que a vida de seu público mudou nos últimos 12 anos. Veem e seguem vendo. Na madrugada de sábado passado, quando a banda entrou no palco do Bailão, um mar de smartphones a filmava. Os badalados paus de selfie também despontavam por lá. Vários bonés bacanas, com logotipos de times da NBA, camisas oficiais de times do futebol europeu, roupas de marcas chiques e muito respeito entre as pessoas. Um respeito que não observo em outros ambientes da Zona Sul de BH que costumo frequentar.

Gestos simples, mas que significam muito. Vira e mexe, alguém esbarrava em mim. Acontece. Sou gordo e ocupo espaço. Mas ali estava também um branco que foi de táxi pra Venda Nova, saindo da Região Central da cidade. Depois de cada esbarrão, recebi sempre pedido de desculpas muito educado. Imbuído do meu preconceito, achei que seria diferente. Fui um idiota por ter pensado assim.

Mesmo sem gentileza, as palavras de Brown têm muita força, principalmente quando se considera a relação entre o público e o artista naquele Bailão. Vale destacar: ninguém, mas ninguém mesmo, estava ali para encher a cara e ficar louco, ou melhor, “loko”. Quem pagou entre R$ 40 e R$ 100 pelo ingresso foi até lá ouvir o recado, cantar as letras conhecidas, aprender um pouco mais do novo disco, Cores e valores, prestar atenção em cada míssil de perdigoto lançado por Mano Brown em seus discursos políticos entre uma canção e outra.

A questão do consumo, das roupas, dos bonés e do estilo dos jovens que ali estavam impacta quem foi ao Bailão com seu olhar “de fora” da Zona Norte, de estrangeiro, mesmo que habitué de shows de rock e com incursões em exposições agropecuárias no interior e alguns carnavais. Penso ser fundamental destacar que não sou fã da banda e nem conheço todas as músicas, mas curto demais a oportunidade de ir a ambientes diferentes daqueles a que estou acostumado e escutar um som que, acima de tudo, respeito e cuja relevância busco compreender.

O que percebi neste show de rap foi interessante, pois quando o Racionais iniciou sua carreira, no fim dos anos 1980 e início dos 1990, o acesso a produtos da moda era quase uma utopia para os fãs de Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue. Hoje, é uma realidade – e virou tema de uma das faixas de Cores e valores. A oportunidade de consumir, participar do jogo capitalista e poder desfrutar do benefício que o modo de produção proporciona é fundamental para a cidadania. Consumo é poder. Fico feliz, quase emocionado, quando percebo a reação de alguém viajando pela primeira vez de avião ou acompanho um senhor embarcando na lotação com uma TV de plasma ou LCD de dezenas de polegadas.

A letra de uma das canções apresentadas naquela madrugada toca nesse ponto. Eu compro diz assim: “O que todos almejam é patrimônio e riqueza/ Pro favela é proeza ostentar a nobreza/ Viajar, conforto, tem que ser primeira classe!/ Hotel cinco estrelas em Miami na night gastar/ Os nego quer algo mais do que um barraco pra dormir/ Os nego quer não só viver de aparência/ Quer ter roupa, quer ter joia e se incluir/ Quer ter euro, quer ter dólar e usufruir”. E mais: “Eu quero/ Eu compro/ E sem desconto”...

Apesar da crítica destinada ao PT por Brown, é possível fazer a relação entre o aumento da renda do público do grupo durante os mais de 12 anos de governo petista e a mudança nas letras e temáticas das canções do Racionais. No clássico disco Sobrevivendo no inferno (1997), o cenário é o pior possível. Sobreviver é um desafio e a chance de morrer, iminente. Na bela Tô ouvindo alguém me chamar, o personagem, seduzido pela criminalidade, é assassinado por um parceiro: “Dez minutos atrás, foi como uma premonição/ Dois moleques caminhando em minha direção/ Não vou correr, eu sei do que se trata/ Se é isso que eles querem/ então vem, me mata!”.

Uma análise atenta dessa questão foi escrita pelo ensaísta e compositor Francisco Bosco na edição 192 da Revista Cult, que publicou um dossiê sobre o grupo paulistano. Atentem a este parágrafo de “A voz e a música dos Racionais”: “O Racionais se formou em 1989, ano portanto da primeira disputa de Lula pela Presidência do Brasil. Essa convergência é carregada de sentidos e efeitos que se desdobram até hoje. O primeiro Lula, egresso do sindicalismo, foi a voz anticordial na política brasileira, erguendo-se contra as astúcias da modernização conservadora, apoiada por milhões de sujeitos socialmente massacrados, que se galvanizaram por ela. O primeiro Racionais foi, por sua vez, a voz anticordial na cultura brasileira, inspirada pelo racialismo dos negros estadunidenses, veiculada numa forma seca, franca e direta, capaz de internalizar e capturar o sentido da violência brasileira de uma maneira sem precedentes, e cuja força de verdade poética e histórica era tanta que colocou em crise toda a tradição da cultura popular brasileira, que até então se reconhecia em formas intimamente ligadas aos valores do encontro, da mistura, da conciliação de classes.”

De volta ao Bailão de Venda Nova: saio em fila indiana, quase às 4h, e tento compreender o palavrão proferido por Brown contra o PT. Qual o motivo disso? É, sem dúvida, um ótimo alerta para os petistas. Será que foi a nomeação do ministério da presidente Dilma? Ou o fato de o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), ter escolhido Gabriel Chalita (PMDB) para secretário de Educação? Ou um pouco disso tudo e outros fatos levam grande parte da militância do PT a se sentir traída pela desconexão entre o discurso de campanha e a prática do Brasil real e profundo infestado por PMDB e afins?

São muitas as questões e elas não devem ser respondidas com reduções típicas do Fla-Flu político recorrente no país, que considera quem não é petista um tucano, ou vice-versa. O grito de Brown liga uma chave e talvez a resposta passe por decifrar o desejo do público do Racionais, que vai bem além do consumo, do mar de smartphones, dos paus de selfie e das roupas bacanas. Quem ganhou o voto deles tem o dever de descobrir.



EM PRIMEIRO


A edição deste mês da revista especializada Rolling Stone considerou Cores e valores (foto), do Racionais MCs, o melhor disco brasileiro de 2014; e sua 13ª faixa, Quanto vale o show?, a melhor canção nacional do ano passado. O curto álbum (35 minutos), com raps secos e diretos, causou impacto entre os fãs, acostumados a longas letras – Tô ouvindo alguém me chamar tem 11 minutos; O homem na estrada, quase nove. Quando as novatas foram apresentadas no Bailão de Venda Nova, fez-se silêncio, enquanto as antigas canções levaram o público à catarse.

. Daniel Camargos é repórter da editoria de política do Estado de Minas

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