Dois meninos

Em Jequitinhonha: poemas do Vale, o mineiro Adão Ventura já revela o sujeito lírico que despontaria posteriormente no livro A cor da pele, marco da poesia negra brasileira

por 17/01/2015 00:13
Arquivo EM
Arquivo EM (foto: Arquivo EM )
Anelito de Oliveira

O mineiro Adão Ventura foi uma das vozes mais marcantes da poesia contemporânea brasileira. O poeta negro nascido em Santo Antônio do Itambé, região de Diamantina, em 1946, passou a maior parte da vida em BH, onde morreu em 12 de junho de 2004.

Adão estreou em 1970 com um dos títulos mais inusitados da literatura brasileira, publicado pelas Edições Oficina: Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir dele o azul. Título-poema ressoando o surrealismo que também marca seu segundo rebento editorial, publicado em 1976 pela Editora Comunicação, reunindo poemas produzidos a partir de 1972, com o título de As musculaturas do arco do triunfo.

Todavia, o poeta acabou por se firmar como uma das vozes importantes da poesia do país com um título mais objetivo, aparecido em 1980: o célebre A cor da pele (Edição do Autor). E firmou-se, especialmente, como uma das principais referências da chamada poesia negra brasileira, engajada na luta antirracismo.

Realmente, é nesse livro que Ventura se encontra, encontra seus próprios temas e formas, mas a poética que ali se dá a ver é o limite de um processo iniciado em seus dois primeiros livros, que teve, inclusive, um rito de passagem decisivo em Jequitinhonha: poemas do Vale, publicação de 1980 da Coordenadoria de Cultura de Minas Gerais que resultou de viagem do autor, em 1979, por cidades e povoados do Vale do Jequitinhonha.

Esse trabalho configura um significativo exercício socioantropológico, revelando, verbal e visualmente, a vontade sincera de um sujeito de compreender e incorporar referenciais da ancestralidade africana em situação, isto é, acontecendo, atuando sobre modos de ser, estar, viver.

Assim é que nos Poemas do Vale o autor nos apresenta dois textos natalinos, possível via para repensarmos seu lugar na literatura brasileira para além do mero engajamento, que acaba, mais cedo ou mais tarde, sempre reduzindo o horizonte de interpretação a um determinado presente histórico.
Eis o primeiro, intitulado “Natal I”: “Natal é missa do galo à meia-noite,/ leitão e farofa de Conceição do Mato Dentro,/ cachaça de Peçanha, doce de cidra e rapadura/ preta de Santo Antônio do Itambé,/ requeijão de Itamarandiba,/ queijo do Serro,/ goiabada de São Gonçalo/ do Rio das Pedras,/ estórias de seu Teodoro da Fazenda,/ vestido de chita de Biribiri,/ linguiça de Morro do Pilar,/ doce de leite de Sabinópolis,/ marmelada de Guanhães,/ modinhas de Diamantina/ – na herança,/ No sangue, na sombra do cerne dos olhos”.

E agora o segundo poema, intitulado “Natal II”: “Um menino lerdo/ num lençol de embira/ mesmo qu’uma fonte/ de estimada ira./ um menino lama/ num anzol que fira/ algum porte e corpo/ e alma de safira./ um menino cápsula/ de tesoura e crina/ – ritual de crisma/ sem fé ou parafina./ um menino-corpo/ de machado e chão/ a arrastar cueiros/ de chistes e trovão.”

São, evidentemente, abordagens diferentes de um mesmo tema, e que tendem para um acirramento da diferença até a realidade, até atingir – dado característico da poética venturana – uma complexidade, qual seja: a de revelar uma conjunção das duas pontas extremas do processo de criação poética na modernidade, o sublime e o grotesco, o belo e o “feio”, o ideal e o real, enfim – e revelar para ir mais longe.

No primeiro poema, o Natal é visado a partir de uma dada comunidade, com seu entusiasmo gastronômico, sua vestimenta, sua oralidade, configurando-se o ritual como modo através do qual essa comunidade vivencia o Natal.

No segundo poema, por outro lado, o Natal é visado a partir de um viés reflexivo, no qual se estabelece um contraponto angustiado, que se deixa marcar, já numa métrica contida, entre pobreza material, visual, e ideal catolicista, entre o menino jequitinhonhense, negro, mestiço, e o Menino Jesus, branco, puro, tal qual reverenciado no catolicismo, entre o menino segundo o corpo, digamos, e o menino segundo a alma.

Nesse contraponto transparece, no despretensioso Jequitinhonha: poemas do Vale, o drama da percepção do sujeito lírico em Adão Ventura, diretamente vinculado a um drama existencial, que acabaria por levá-lo à poesia da “consciência crítica” e da “revolta”, como se expressou Silviano Santiago em prefácio ao livro A cor da pele.

É esse drama da percepção que, numa compreensão mais aguda, inscreve Ventura na senda aberta por Cruz e Sousa, uma vez que, ainda pensando com o ensaísta de Nas malhas da letra, o poeta de A cor da pele, assim como aquele de Broquéis, entende que a “poesia negra” é questão que vai além de um vocabulário específico, de um suposto falar negro.

Para ambos, enfatiza Santiago, “a cor do vocabulário não tem importância, ou não tem a importância que a ela lhe emprestam os ‘estudiosos brancos da questão negra dos trópicos’”.

Ventura e Cruz, nesses seus escritos-limite, afirmam-se como si-mesmos, mas sob a condição de entrar em choque com a ideia burguesa de literatura, meramente estética, de desmistificar aquilo que outrora eles mesmos, como que numa fatalidade inerente a toda formação artística, contribuíram para mistificar.

Como si-mesmo, o poeta mineiro, tanto quanto o catarinense, é conflito, é agonia resultante da condição de negro numa sociedade ainda racista – ainda e, talvez, mais racista.

Ao recuperar a consciência sobre o que realmente é, o poeta n’A cor da pele se volta contra sua própria função histórica, digamos, de fantasiador, de fingidor, de idealizador, e se apega a enunciados brutos, densos, sociais, historiais, índices de uma realidade monstruosa.

Anelito de Oliveira é pesquisador no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor dos livros A aurora das dobras (ensaio sobre a obra do poeta Affonso Ávila) e Transtorno (poemas)

NATAL I
Natal é missa do galo à meia-noite,
leitão e farofa de Conceição do Mato Dentro,
cachaça de Peçanha, doce de cidra e rapadura
preta de Santo Antônio do Itambé,
requeijão de Itamarandiba,
queijo do Serro,
goiabada de São Gonçalo
do Rio das Pedras,
estórias de seu Teodoro da Fazenda,
vestido de chita de Biribiri,
linguiça de Morro do Pilar,
doce de leite de Sabinópolis,
marmelada de Guanhães,
modinhas de Diamantina
– na herança,
No sangue, na sombra do cerne dos olhos


NATAL II
Um menino lerdo
num lençol de embira
mesmo qu’uma fonte
de estimada ira.
um menino lama
num anzol que fira
algum porte e corpo
e alma de safira.
um menino cápsula
de tesoura e crina
– ritual de crisma
sem fé ou parafina.
um menino-corpo
de machado e chão
a arrastar cueiros
de chistes e trovão

*Versos de Adão Ventura publicados no livro Jequitinhonha: poemas do Vale

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