Para conhecer o Brasil

Reedição de dicionário escrito por Milliet de Saint-Adolphe permite compreender com mais clareza a diversidade dos grupos que formavam o povo brasileiro no século 19

por 10/01/2015 00:13
Jean-Baptiste Debret/reprodução
Jean-Baptiste Debret/reprodução (foto: Jean-Baptiste Debret/reprodução)
Maria Marta Araújo


Aos que podem perguntar a razão de se fazer uma cuidadosa reedição crítica e ampliada do Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Brasil, cuja primeira edição saiu em 1845, respondo: ainda há muito a conhecer sobre as dinâmicas e disparidades socioespaciais, ou melhor, territoriais de nosso país.

O que de modo geral fundamenta a reedição e seus critérios é a certeza de que o dicionário escrito por Milliet de Saint-Adolphe continua a ser obra de referência à pesquisa, principalmente para a compreensão e análise dos diferentes processos que determinaram a configuração histórica e geográfica do país, e, principalmente, porque é fonte obrigatória para o conhecimento das diferentes práticas discursivas que permitiram, no século 19, consolidar a imagem de um império para o Brasil.

Mais do que o próprio conceito de nação, a concepção de um império brasileiro, referendada pela Constituição de 1824, foi o elemento que propiciou a integridade política e administrativa de seu vasto território, principalmente por estar embutido aí o reconhecimento não só da diversidade como do direito de participação de suas diferentes províncias, ou seja, a reunião das várias “pátrias”, designação dada às unidades políticas e administrativas brasileiras desde o tempo das antigas capitanias.

No interior dos verbetes do dicionário, a palavra império é sempre a escolhida para designar o país, mesmo porque nação é considerada mais apropriada para designar os grandes grupos indígenas a que pertenciam as várias tribos que ainda viviam no Brasil, em praticamente todas as províncias, como destaca o autor.

VASTA REGIÃO A palavra Brasil descreve, em um verbete de conteúdo muito mais histórico do que geográfico, não uma unidade administrativa, mas “uma vasta região da América”, talvez a definição mais correta para o que realmente era o país: a mistura de gente e lugares sem qualquer possibilidade de uma única jurisdição. O dicionário de Saint-Adolphe, pelos dados que apresenta, ratifica a caracterização de José Bonifácio de que a povoação brasileira era, naquele momento, “um misto de índios de diversas tribos, negros de diversas regiões, de europeus e judeus, e que se fazia urgente, em função do longo tempo de proibições e privilégios impostos pelo sistema colonial português, avançar o progresso da civilização e a prosperidade do país”.

Na maior parte das vezes, a população dos locais inventariados é descrita apenas como formada de indivíduos de diversas cores, homens e mulheres, livres e escravos.

Em síntese, o império era a reunião, num vastíssimo território, de várias províncias, então sujeitas a um imperador, a quem não era dada a soberania, mas os títulos de chefe político da nação e de seu “Primeiro Representante”, preservando-se assim as identidades construídas ao longo de três séculos na esfera local.

Alcançar a exata descrição, mais que um empreendimento literário ou científico, era premente imposição, pois só assim seria possível ajuizar sobre o seu verdadeiro estado político. Empreendimento que já havia sido tentado, sem êxito, por outros escritores e até mesmo, anos depois, pelo próprio Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).

Diferentemente, o dicionário de Saint-Adolphe, ao trabalhar com a hipótese real do erro, conseguiu ser uma de nossas principais fontes para constatar não apenas fatos e números verídicos, mas a diversidade das experiências históricas e espaciais dos diferentes grupos que então formavam o povo brasileiro, e também para compreender quão diversas eram as maneiras de pensar e viver social e culturalmente o espaço e o território.

POPULAÇÃO
Os dados de população são pontuais, porém Saint-Adolphe sabe da raridade dos mesmos, e, quando possível, arrisca-se a reproduzi-los. Que estes interessam à história local, não há dúvida, mas os números, mesmo incompletos e dispersos em meio ao grande território do império, não deixam de oferecer rara amostragem do conhecimento disponível e das formas diversificadas de classificação demográfica utilizadas na contabilidade da população brasileira naquela época.

A liberdade para trazer a público esta nova edição – com algumas intervenções da nossa parte, como é o caso da ortografia, que foi modernizada, e da inserção de acréscimos – nos foi dada pelo autor e seus editores, que, além de explicitar a limitação intrínseca do empreendimento e a existência certa de erros, solicitaram a contribuição dos contemporâneos por meio de uma rede de correspondentes, ansiando por novas edições, corrigidas e ampliadas.

Monumento nacional, não obstante suas imperfeições e erros, o dicionário de Saint-Adolphe é, ainda hoje, como diz Caetano Lopes, um mapa geral do Império do Brasil, onde se poderão ir classificando as diversas modificações que se forem fazendo em sua divisão territorial, bem como na ereção de novas províncias, comarcas, cidades, vilas etc.

Caminhando nessa direção, acrescentamos nesta nova edição a atualização toponímica das principais aglomerações urbanas do século 19, sendo para isso utilizadas as bases de dados e informações históricas dos municípios brasileiros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outras fontes complementares.

TOPONÍMIA Sem ser exaustiva, uma vez que não é sua intenção esgotar o amplo universo das mudanças da toponímia no Brasil, trata-se de um investimento inicial que tem por objetivo estimular a realização de novas investigações, sobretudo na dimensão local, onde será possível avançar, ainda com maior propriedade, nas relações históricas entre as comunidades do passado e as atuais povoações brasileiras.

Dentro dos padrões editoriais adotados pela Fundação João Pinheiro, em sua renomada Coleção Mineiriana, o dicionário de Milliet de Saint-Adolphe foi acrescido de índices que facilitam bastante a consulta, como o de topônimos atualizados, de nomes e personagens históricos citados pelo autor e o índice dos verbetes agrupados por província.

Na época, o império brasileiro tinha 18 províncias, as mesmas do período da Independência. Essa divisão administrativa se manteve praticamente a mesma em todo o período monárquico. Foi criada apenas a província do Amazonas, em 1850 – desmembrada da província do Pará –, e elevada à condição de província independente, em 1853, a comarca de Curitiba, com a denominação de província do Paraná.

Ao agrupar os verbetes num índice remissivo pelas províncias existentes em 1845, a nova edição do trabalho oferece importante instrumento de auxílio a pesquisadores, tendo em vista que a sua disposição alfabética não permitia uma pesquisa mais direcionada por determinada província, como é o caso de Minas Gerais. Por esse índice, já se percebe quão dinâmicas eram as províncias do Norte e Nordeste do país, com suas vilas, aldeias, canais de transporte e vias de comunicação.

Os estudos críticos acompanham a nova edição muito contribuem para a devida contextualização da obra, como ocorre com os mapeamentos que ela traz e não poderiam ser simplesmente reproduzidos sem uma devida análise histórica e crítica.

Aos que querem romper as barreiras do nosso conhecimento faltante, eis um dicionário que ajuda a conhecer o Brasil.

A historiadora Maria Marta Araújo é coordenadora da edição do Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Brasil pela Fundação João Pinheiro



MINEIRIANA

O novo volume do Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Brasil é fruto da parceria da Fundação João Pinheiro com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O título, reeditado pela Coleção Mineiriana, foi escrito pelo militar francês Milliet de Saint-Adolphe durantes os 26 anos em que morou no país, no século 19.

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