O Tom das palavras

Vinte autores recriam canções de Antônio Carlos Jobim em contos. Livro traz textos de Silviano Santiago, Menalton Braff, Branca Maria de Paula e Vinícius Jatobá, entre outros

por 10/01/2015 00:13
Ana Lontra Jobim/divulgação
Ana Lontra Jobim/divulgação (foto: Ana Lontra Jobim/divulgação )
Ângela Faria

"Sou um músico que acredita em palavras”, declarou Tom Jobim em entrevista concedida a Clarice Lispector, em 1971. Pois não é que o maestro soberano, cuja morte completou 20 anos em 8 de dezembro, “ficou encantado” nas páginas de um livro?


Escritores se inspiraram em canções com letra e música de Antônio Carlos Jobim para criar os 20 textos de Vou te contar, organizado por Celina Portocarrero. O mutirão jobiniano celebra um artista oceânico, como bem lembrou Ruy Castro na contracapa do livro. Tom extrapolou a música para desaguar no cinema e no teatro. Vertidas em melodia, suas paisagens compõem uma espécie de geografia transcendental. Guiados por ele, cultivamos praias, aeroportos, mantiqueiras, ipanemas e gamboas muito particulares – só nossos.


Vou te contar é também assim: cada autor nos revela o seu Tom. Esqueça sal, sol e garotas douradas, clichês bossa-novistas. Falando de amor (“Se eu pudesse por um dia/ Esse amor, essa alegria...”) nos traz um Menalton Braff às voltas com Leonardo, que rói as unhas por um romance envergonhado que começou na papelaria de subúrbio, em meio a cartuchos de impressora, formulários e envelopes. Se o e-mail fulminou as cartas de amor, Leonardo resiste. Usa as maltraçadas para nos fazer cúmplices de sua agonia de apaixonado.


“Chega mais perto, moço bonito/ Chega mais perto meu raio de sol”, diz a canção. Pois a Gabriela de Henrique Rodrigues continua baiana, embora moça moderna. Mãe solteira, troca o sonho de ser doutora pelo trampo para sustentar o filhote. Junta dinheiro por meses a fio, arma-se de coragem, enfrenta horas de viagem para chegar a Paraty. Há 10 anos, tomou conhecimento de uma tal de Flip pela TV. “Mas quem sou eu nesta vida tão louca?”, canta Tom. Gabi dá uma de doida, desembesta BR abaixo e vai ver de perto aquele “lugar feito só de livros”.


A mineira Branca de Paula escolheu Querida (“Longa é a arte/ tão breve a vida”). Inventou um mocinho cego que curte o mundo a partir da escuridão. De sua cidade barroca, ele quer saber se amarelo tem gosto espevitado de abricó, exige comer suspiros de todas as cores (haja anilina!) e devora rosas de jardim. Ao conhecer Nereida, vê-se às voltas com Ulisses, Penélope e Odisseia. Pela musa, enfrenta hospitais, salas de cirurgia e quartos de hospital.


Já Silviano Santiago se inspirou em Cai a tarde. Seu drama se desenrola do Leme ao Leblon, na Zona Sul tão cara a Tom. O protagonista, boêmio dado às letras, puxa angústia temperada pela culpa; a ex-mulher, moça bem de vida, despachou-o de seu apê. “Vento sopra vento/ Levantando a poeirada pelo chão/ Vento sopra vento/ Sopra dentro do meu coração”, canta Jobim. Entre baratas, pernilongos e spray mata-insetos, o anti-herói de Silviano vê a velhice chegar tentando expurgar o remorso. “Cai a tarde no meu espírito”, conforma-se.


Três Ângelas – a autora (Angela Dutra de Menezes), a moça da canção e a personagem do conto – veem-se confinadas em um avião. A turbina avariada deflagra pesadelo, terror e epifania, enquanto certa noite de raios ilumina vida e morte.


Outras musas de Tom ganham páginas de Suzana Fuentes (Ana Luiza) e Mirna Brasil Portella (Lígia). Wave (assinado por Adelice Souza), Você vai ver (Antônio Carlos Viana), Vivo sonhando (Danielle Schlossarek), Passarim (Marilia Arnaud) e Samba de Maria Luiza (Carlos Henrique Schroeder) são “contos-canção” do livro.


Coube a Vinícius Jatobá a tarefa de fechar o verão – e o volume – com Águas de março. Considerado pela revista inglesa Granta um dos 20 jovens destaques da literatura brasileira, Vinicius dá cabo da missão em pouco menos de duas páginas, rápido como aqueles torós destruidores: são 32 linhas e um único parágrafo, sob o “generoso azul do sol”.

 

VOU TE CONTAR
20 HISTÓRIAS AO
SOM DE TOM JOBIM
Org: Celina Portocarrero
Editora Rocco, 208 páginas, R$ 34,50

 

TRECHOS

. FOTOGRAFIA
“Aquele gosto forte e uma súbita tontura: pensou que fosse levitar mas não. A primeira tragada desceu aquecendo os pulmões, e lá se vão cinco anos sem fumar, e agora, justo agora, justo hoje, reatou o vício que tanto custou deixar. Os táxis passavam: vermelhos, amarelos, brancos. O aeroporto cheio, de fantasmas, de gente afundada em celulares, tablets. A fumaça subia, leve, dançando; obviamente a parte mais feliz de todo o ciclo. Olhou para o cigarro e teve mais uma vez a certeza de que era um homem estúpido (...) Mas fumar é bom, ele pensou. Alegre e tonto, fumar é bom, mas logo lembrou que estava no aeroporto e quem estava esperando, e um calafrio fez com que ele desse umas cinco tragadas consecutivas. E ficou mais tonto, e começou bater fotos compulsivamente com seu iPhone: da fila de táxis, das cores, de rodas sem calotas, do meio-fio e até de umas bundas que passaram tão insinuantes que... Ele teria que apagar essas fotos.”
. De Carlos Henrique Schroeder

 

. AS PRAIAS DESERTAS
“E vim mais cedo porque queria ver a sua chegada. A calça social dobrada na barra das pernas, uma camisa polo de cor escura, talvez marrom, os óculos redondos de armação tartaruga. Nos pés, tênis usados ainda dignos. Imagino esse desenho recortado de um fundo azul, sua pressa em deixar para trás a paisagem, o movimento só no primeiro plano, sem perspectiva. Você.
O mar está calmo, bom de tomar banho, dá para ver daqui. Na frente do banco de areia há uma daquelas piscininhas onde as crianças gostam de brincar e fazer xixi. Quando eu era menina, caçava siris ali. Meu pai ensinou a usar o puçá. A gente entra na água sem fazer barulho e fica de olho nas manchas pretas que sobressaem na areia, por contraste. Quando acha, basta um golpe rápido.”
. De Marcelo Moutinho

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