A novela sob escrutínio

por 10/01/2015 00:13
Alex Carvalho/TV Globo
Alex Carvalho/TV Globo (foto: Alex Carvalho/TV Globo)
Karina Gomes Barbosa


Começa um capítulo de Império, exibida pela TV Globo. Em minutos, minha timeline do Facebook é inundada por posts dos integrantes do grupo Odete Roitman Não Morreu (o mesmo ocorre com mais intensidade no Twitter, onde os comentários sobre TV são ainda mais frequentes). Império é dessas telenovelas que mobilizam o público brasileiro. E, como muito se discute no ambiente acadêmico, o frisson sobre a trama de Aguinaldo Silva se efetiva não apenas em conversas, cartas, e-mails, capas de revistas de TV ou na repercussão tradicional do entretenimento televisivo (que, no Brasil, sempre foi grande), mas também ao vivo, em tempo real (como se os outros tempos fossem menos reais ou irreais...), sobretudo nas redes sociais.

É a chamada TV Social, conceito que nomeia algo já sabido pelos telespectadores com perfis no Facebook e no Twitter: está mudando, irremediavelmente, a maneira de se assistir à TV. Sobretudo, a de se consumir entretenimento na TV. A crítica agora é instantânea; a reação é apaixonada e imediata; as respostas, muitas vezes, também.

As redes sociais colocam a telenovela sob a lente do escrutínio do público nesse dito tempo real, amplificando sua reverberação e importância. Foi o que se viu com o fenômeno Cheias de charme. A novela das 19h sobre a ascensão social de três empregadas domésticas não apenas repercutiu no ambiente digital – incorporou a internet e as redes à narrativa, que em alguns momentos (ainda poucos) dependeu da web para avançar. Avenida Brasil foi no mesmo caminho e apaixonou a audiência na internet.

O espectador interativo não busca apenas comentar as tramas e participar das ações apresentadas por elas. Ele propõe conteúdos espontaneamente, como memes, vídeos, hashtags, paródias, análises. E se apresenta como fiscal voluntário da telenovela, em um controle de qualidade non stop e implacável.

Graças ao fenômeno da TV Social, a telenovela tem de andar na linha, especialmente em termos de coerência interna e continuidade, sob o risco de cair no ridículo, como foi o famoso caso da perda das fotos pela personagem Nina/Rita em Avenida Brasil. Em tempos de nuvem, pen drive, e-mail, cartão de memória, foi pra lá de inverossímil a personagem perder todas as imagens, feitas com câmera digital. “Coisas de novela”, como diziam antigamente.

Essa tensão se ancora em três fatores principais: a tendência realista/naturalista de grande parte da teledramaturgia contemporânea nacional; o acesso facilitado aos capítulos na internet, que permite encontrar furos ao possibilitar que o consumidor veja os capítulos várias vezes; e a cultura de participação dos fãs, que têm inúmeros meios de interagir com a trama e sobre a trama.

Esse tripé exige que as “coisas de novela” sejam, também, as nossas coisas. Por isso o público não perdoou o realismo pastelão de Salve Jorge. Nesse caso, em especial, a novela embarcou numa espiral tão inacreditável em meio ao pretenso naturalismo do contexto dos morros, das UPPs e do tráfico de mulheres que fez sucesso cômico involuntário – para dissabor da autora, Glória Perez. Irritada com as críticas, especialmente no Twitter, Perez desabafou: “Pobre de quem não consegue voar”.

A inabilidade de embarcar na idiossincrasia (voar...) acometeu também os telespectadores de Boogie Oogie, no ar às 18h, exibida pela TV Globo. A novela, declarada homenagem a Dancin’ Days (recentemente reprisada no canal pago Viva), passa-se em 1978, mas tem sido enxovalhada nas redes sociais pela falta de precisão histórica. Algumas delas: os poucos cabelos volumosos da época; os esmaltes modernosos, como preto, verde (alguns deles, diga-se, das linhas assinadas pelas atrizes da trama, como Isis Valverde e Deborah Secco); as sobrancelhas grossas e as maquiagens leves; as músicas anacrônicas. Alguns figurinos também estão fora do tom.

Há preciosismos na lista, mas também erros grosseiros, como um shopping, anos antes da inauguração do primeiro do tipo no Rio de Janeiro. Ou uma citação a Tears for Fears antes de a banda começar. Outras reclamações incluem o visual gótico e tatuado da vilã Susana (Alessandra Negrini) e o pastiche presente nas roupas da personagem Vitória (Bianca Bin).

Talvez o modo de encarar a chamada suspensão da descrença esteja mudando. Mas esse contrato de credibilidade só se flexibiliza quando a telenovela propõe cruzamentos que, declaradamente, acintosamente até, desafiam a verossimilhança (e aí se torna mais fácil crer naquilo que a obra propõe), como foi o caso recente de Cordel encantado, ambientada entre um sertão e um reino francês imemoriais. Numa interpretação pós-moderna do conto de fadas, o herói do cangaço usava calça jeans, mas o cinema ainda estava sendo inventado. Nesse e em outros casos, o espectador é avisado que o naturalismo/realismo passa à margem da trama. As cobranças são outras, portanto.

De maneira geral, as críticas sofridas por Boogie Oogie dizem respeito a algo que os estudos de adaptação, sobretudo os ingleses, atestam: as representações veiculadas em adaptações (seja de épocas históricas, seja da literatura) tratam tanto do tempo que representam quanto do tempo em que as representações são produzidas.

Isso significa que, apesar da precisão histórica de muitas telenovelas (ou minisséries, que têm mais possibilidades industriais e financeiras de cuidar disso com minúcia), inevitavelmente a contemporaneidade se infiltra naquele pretenso passado reproduzido, pois a representação de tal tempo passado está inserida no contemporâneo e é efetivada nele. É, assim, inescapável do contemporâneo.

Quando tratamos de tempos mais próximos que os coloniais (antigas vedetes da telenovela brasileira), como 1978 – ano em que se passa Boogie Oogie –, o risco dessa “contaminação” de tempos é muito maior, pois o passado é logo ali. Por isso, a vilã rebelde é muito mais sombria, algo pré-punk anos 1980, do que possivelmente teria sido em Dancin’ days (basta comparar com o visual da Iolanda Pratini de Joana Fomm). Se as representações desses idos são inevitavelmente permeadas pelo contemporâneo que os representam, é natural que estejam, mais abertamente, sujeitas à constante vigilância do público.

Os espectadores, por outro lado, ao explorar novas e diversas formas de consumir a telenovela, descobriram outros prazeres além da fruição dramática: encontrar erros, questionar a verossimilhança, provocar. Nesse último ponto, trazer ao palco da teledramaturgia questões nevrálgicas da identidade brasileira, cruzando nosso principal produto cultural com o que ele diz a respeito de nós como nação e povo, talvez seja uma das consequências mais vibrantes desses novos tempos de TV Social.

Racismo, discussões de gênero, preconceito, xenofobia, machismo, sexismo... Tudo está em pauta e pode ser colocado em xeque pelos espectadores, que, mais informados e inflamados pelos debates públicos (e rasos, muitas vezes) sobre esses assuntos, não hesitam em prestar atenção em como a novela trata cada um deles. Não há consenso (deve haver?) nas posições: apenas vibração de um momento histórico em que a telenovela está posta sob as lentes do microscópio do público pelo que representa e pelo modo como representa o que escolhe colocar na tela.

Karina Gomes Barbosa é professora do curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)

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