O jacobino de DIAMANTINA

Um dos escritores mais polêmicos do início do século 20, o mineiro Antônio Torres comprou brigas memoráveis com autoridades católicas e a intelligentzia carioca

por 20/12/2014 00:13
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Carlos Herculano Lopes



Vítima de uma série de complicações decorrentes de focos infecciosos nos dentes e nas articulações superiores das pernas, como informou o professor João Antônio de Paula no ensaio “O diabo na Mineiriana”, publicado no livro Olhares sobre Minas: sugestões de leitura (2008), organizado pela professora Maria Augusta Nóbrega Cesarino, o jornalista e diplomata Antônio Torres morreu em 17 de julho de 1934 em Hamburgo, na Alemanha, onde servia no consulado brasileiro. Depois de embalsamado, seu corpo foi enviado para o Brasil e enterrado no Cemitério do Bonfim, em BH. Tinha 48 anos. Na Sagrada Família, tradicional bairro da capital mineira, uma rua leva o seu nome.

João Antônio de Paula, depois de destacar ter sido Antônio Torres um dos escritores mais lidos do Brasil do início do século 20, lembra que ele foi pouco estudado e deixou uma obra relativamente pequena, se se considerar seu talento literário reconhecidamente superior.

Guimarães Rosa, sucessor de Torres no posto diplomático na cidade alemã, escreveu: “Acho que tinha rompante, verve, muita cultura (ah, o seminário...) e uma coragem danada, meio de desespero, além de pena e estilo sem ferrugem”.

Mineiro de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, onde nasceu em 31 de outubro de 1885, Antônio Torres era o mais velho dos 10 filhos do ourives Vicente Pereira Guimarães Torres e de Maria Amélia dos Santos Torres. Pessoa conceituada na cidade, segundo registrou Gastão Cruls no livro Antônio Torres e seus amigos (Companhia Editora Nacional, 1950), seu pai, nos últimos anos da monarquia, foi um dos moradores do antigo Arraial do Tejuco que mais se bateram pela mudança do regime. Um de seus irmãos, o coronel Vicente Torres, chegou a ser comandante da PM mineira – ainda hoje é lembrado na corporação.
 
REFÚGIO

Como ocorreu com o conterrâneo mais famoso, o futuro presidente da República Juscelino Kubitschek de Oliveira, o adolescente Antônio Torres, devido às dificuldades financeiras da família, além do forte sentimento católico, também “buscou refúgio” no Seminário de Diamantina. Isso se deu em 1902, depois de ter se diplomado na Escola Normal.

“Foi com a mesma aplicação e aproveitamento, distinguindo-se sempre entre os colegas, que Torres alcançou todas as ordens sacramentais, de minorista a presbítero, sendo que este último grau, recebido a 21 de abril de 1908, só lhe pôde ser outorgado com licença especial do núncio apostólico, uma vez que ainda não havia chegado aos 24 anos de idade exigidos para o sacerdócio”, registrou Gastão Cruls.

A “missa nova” do jovem sacerdote foi celebrada em 26 de abril, na Capela de Nossa Senhora do Amparo, lá mesmo em Diamantina, fato registrado pelo jornal local A Estrêla Polar, com o qual Torres, ainda seminarista, começou a colaborar.

Por aqueles tempos, começava a se manifestar o Antônio Torres polemista, sarcástico e panfletário, atributos que fariam dele, anos depois de ter se mudado para o Rio de Janeiro e abandonado a batina, “por absoluta falta de vocação religiosa”, um dos jornalistas mais famosos e temidos do Brasil.

No jornal O Mucuri, de Teófilo Otoni, meses depois da sua ordenação, Torres publicou um artigo, ainda assinando Padre Torres, no qual desancava um figurão político pela “série de asneiras que praticou”. Como desagradou não só ao poderoso como à cúpula da Igreja, que não queria confusão com o poder estabelecido, passou a assinar com o pseudônimo de O Pimentinha.

COLUNA


Nos idos de 1908, o padre Torres, já começando a ter seus primeiros conflitos com a Igreja Católica, resolveu visitar parentes no Arraial de Santo Antônio da Coluna, atual cidade de Coluna, no Vale do Rio Doce. “Aí o seu êxito foi completo, pobre êxito, para quem teria a sua prédica por muito acima do auditório”, anotou Gastão Cruls. Logo depois de o jovem sacerdote celebrar a primeira missa no lugarejo, que parou para recebê-lo com foguetes e banda de música, um matuto se aproximou, na maior simplicidade, e confidenciou, numa explícita referência à sua cor mulata: “Ah, seu padre, eu desejava vê vancê numa altura que vancê até nem merece”.

Àquelas alturas, contou Gastão Cruls, o povo de Coluna já o saudava como seu futuro sacerdote. Foi quando ele disse à prima e confidente, a professora Heroína Torres, com a qual manteria extensa correspondência: “Coitados! Estão pensando que vou ficar aqui, mas estão completamente enganados. A ovelha não nasceu para viver no mato”. Em seguida, seguiu para São Gonçalo do Rio das Pedras, distrito do Serro; passou um período em Patrocínio de Guanhães, hoje Virginópolis, também no Vale do Rio Doce; e esteve em Juiz de Fora, participando do Congresso Católico Mineiro. Em 1910, depois de voltar a Diamantina, mudou-se para o Rio de Janeiro. Nunca mais retornou à cidade natal.

CARDEAL


Em seus primeiros dias na então capital da República, o padre Torres ficou hospedado na casa do serrano Antônio Felício dos Santos, da família do jurista e escritor Joaquim Felício dos Santos (autor de Memórias do Distrito Diamantino). Por essa época, conheceu Joaquim de Salles, também nascido no Serro, autor de outro livro famoso, Se não me falha a memória. O voluntarioso padre mineiro, em pouco tempo, iria se indispor com o poderoso cardeal dom Joaquim Arcoverde por ter escrito um artigo no qual atacava a catequese indígena entregue a missionários estrangeiros.

Para se ver livre dele, pelo menos temporariamente, o cardeal deu um jeito de mandá-lo para Botucatu, no interior de São Paulo. Torres ficou por lá pouco tempo, até ser nomeado vigário de Tatuí, também no interior paulista. Passou, então, a enviar para A Estrêla Polar, de Diamantina, a série Cartas paulistas, que não durou muito.

Em 1912, de volta ao Rio, abandonou a batina e se dedicou ao jornalismo. Mas a fama, segundo Gastão Cruls, só começou a bater às portas três anos depois, quando o mineiro, trabalhando em A Gazeta de Notícias, passou a publicar artigos e crônicas “que imediatamente despertam a atenção do público pelo desassombro com que defende as suas ideias, sempre que preciso apoiadas num lastro de excelente cultura.” Torres escreveu também para O Paiz, A Notícia, Jornal do Commercio, A Noite, A Crítica, A Manhã, Última Hora e Correio da Manhã. Fez grandes amigos e inimigos terríveis, aos quais dirigia sua pena ferina.

BEST-SELLER


Entre 1920 e 1925, lembra João Antônio de Paula, depois de aprovado em concurso para integrar o corpo consular do Itamaraty, Torres publicou quatro livros, que tiveram grande repercussão e vendagem: Verdades indiscretas, Pasquinadas cariocas, Prós & contras e As razões da Inconfidência, que reuniu o texto de uma conferência pronunciada em 1925, na Associação dos Empregados do Comércio do Rio de Janeiro. Esse virou best-seller: poucos meses depois do lançamento, já havia vendido mais de 20 mil exemplares, um assombro para a época. De 1920 até 1934, quando morreu, Torres, entre idas e vindas ao Brasil, sempre escrevendo para jornais, deu vazão à verve panfletária e inconformista. Serviu nos consulados brasileiros em Londres e Hamburgo, com breve passagem por Berlim.

Também ficou famosa a correspondência que o cronista manteve com amigos fiéis como Gastão Cruls, a prima Heroína Torres, seu pai, Vivente Guimarães Torres, o padre Alexandrino Cordeiro da Luz, o diplomata Joaquim Eulálio do Nascimento Silva, e o irmão, Itagiba Torres. Muitas cartas foram transcritas no livro de Gastão Cruls, Antônio Torres e seus amigos . Algumas – assim como sua obra, injustamente desconhecida atualmente – fazem parte do acervo da Biblioteca Pública de Diamantina, que leva seu nome.

Segundo o poeta e crítico Alexei Bueno, na apresentação do livro Antônio Torres – uma antologia, do diplomata Raul de Sá Barbosa, lançado pela Topbooks em 2003, o mineiro foi um grande jacobino, de uma lusofobia que chegava ao delírio, além de inimigo feroz da colônia portuguesa no Rio de Janeiro, numa época em que os lusitanos controlavam a quase totalidade do comércio e da imprensa.

“Entre suas vítimas de predileção, às quais jamais prodigalizava o refrigério de uma trégua, estavam a Igreja Positivista, o culto a Benjamin Constant, João do Rio, Antônio Austregésilo, Felinto de Almeida e Gilka Machado, além da Academia Brasileira de Letras. Se nem sempre foi justo, foi sempre brilhante, e não é mais do que isso que se pede, em qualquer tempo e lugar, aos grandes panfletários”, escreveu Alexei.

O poeta afirma que Antônio Torres, com seus artigos e crônicas, está entre os grandes cronistas do Rio de Janeiro. E cita a “pequena lista” em que o acompanham “monsenhor Pizarro, Padre Perereca, Melo Morais Filho, Vieira Fazenda, Ernesto Sena, Luiz Edmundo, Vivaldo Coaracy, Lima Barreto, o seu arqui-inimigo João do Rio, Gastão Cruls, Brasil Gerson, Sérgio Porto e pouquissímos outros”.

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