Herói das terras do Sul

Há 180 anos, nascia o escritor José Hernández, autor de Martín Fierro, poema épico e popular, considerado um dos fundadores da literatura de seu país

por 13/12/2014 00:13
Ediciones Jaguel/Reprodução
Ediciones Jaguel/Reprodução (foto: Ediciones Jaguel/Reprodução)
Carlos Herculano Lopes


Em 10 de novembro – a data passou a ser considerada o Dia da Tradição na Argentina – completaram-se 180 anos do nascimento, na localidade de Perdriel, hoje um subúrbio de Buenos Aires, do jornalista, soldado e escritor José Hernández (1834-1886), autor do poema épico Martín Fierro, que muitos consideram como obra fundadora da literatura no país. A primeira parte, O gaúcho Martín Fierro, de acordo com o historiador gaúcho Guilherme Schultz, teria começado a ser escrita em 1871, na casa da família Labarte, em Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul, onde Hernández vivia exilado.

O motivo foi ele ter participado de uma quartelada, das muitas ocorridas na Argentina no século 19, liderado pelo general Ricardo López Jordan, e que culminou em 1870 com o trágico assassinato de J. Justo de Urquiza, o lendário caudilho da província de Entre Rios. Cinco anos antes, ao se iniciar a Guerra da Tríplice Aliança, em que o Brasil, Argentina e Uruguai se bateram contra o Paraguai de Solano López, Hernández combateu ao lado das forças aliadas quando da invasão da província argentina de Corrientes.

Num ensaio sobre a obra, O Martín Fierro, publicado no Brasil pela Editora L&PM em 1978, Jorge Luis Borges escreveu: “Fugiu, dizem que a pé, para a fronteira com o Brasil. Umas palavras reticentes, estampadas no prólogo de Martín Fierro, dizem que a composição dessa obra o ajudou a fugir do tédio da vida do hotel; Lugones entende que essa referência é a um hotel da Praça de Maio, no qual ele improvisava o poema ‘entre seus negócios de conspirador’; outros interpretaram que alude a Santana do Livramento, onde os gaúchos orientais e rio-grandenses traziam-lhe lembranças dos gaúchos de Buenos Aires. Algumas locuções próprias da campanha do Uruguai parecem justificar essa conjectura”.

Em artigo publicado em 1998 no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o professor Ricardo Carle, ao também fazer coro à vivência de José Hernádez em Santana do Livramento, escreveu que “em seus momentos de ócio, ele ia para a Praça Duque de Caxias (agora General Osório), e sentava-se nas proximidades do local onde agora está alojado o seu busto. Sob as frondosas árvores, ele buscava inspiração para contar a história do gaúcho valente e justo que combatia a injustiça, movido por seu próprio código de honra”. As polêmicas em torno de Martín Fierro ter ou não começado a ser escrito no Rio Grande do Sul ainda perduram, causando discussões apaixonadas.

Seja como for, a primeira parte dessa obra grandiosa, que também ficou conhecida como “Os Lusíadas dos Pampas”, foi lançada em 1872, em Buenos Aires, onde José Hernández teria voltado a viver depois de sua breve passagem pelo Brasil. Já a segunda parte da obra, conhecida como ‘‘A volta de Martín Fierro’’, só teria se tornado pública sete anos depois, em 1879, também na capital portenha, onde o autor, que chegou a ser dono de um jornal, Rio de La Plata, e senador provincial, já era figura conhecida.

Composta por 33 cantos, todos escritos em tom épico e emocional, com momentos da mais pura e intuitiva poesia, José Hernández, para compor a obra na qual conta as aventuras e desventuras do gaúcho Martín Fierro, teria se inspirado na sua própria experiência. Ainda jovem, com pouco mais de 19 anos, chegou a participar como soldado da famosa Campanha do Deserto, expedição realizada com o intuito de combater os índios pampas, tomar suas terras e abrir caminho para os grandes criadores de gado. “E começam as desgraças/ dando princípio à função/ pois que não há salvação/ que ele queira ou não queira/o mandam para a fronteira/ e o fincam em um batalhão.”

Caudilho Em outro ensaio sobre a obra, escrito para uma edição brasileira de Martín Fierro publicada em 1980 pela Universidade de Caxias do Sul, com tradução de Leopoldo Jobim, o escritor mineiro Guilhermino César, que viveu muitos anos em Porto Alegre, sustenta outra tese. De acordo com ele, Hernández, ao contar a história de um gaúcho destemido e justiceiro, não se preocupou com o destino dos índios combatidos por ele.

“Em verdade, José Hernández, autor do período rosista (referência a Juan Manuel de Rosas, caudilho que governou a Província de Buenos Aires e que depois se tornou presidente do país), quando a campaña del desierto redundou no quase extermínio das tribos, não se mostrou adepto do tirano de Buenos Aires. Contudo, o herói de seu poema procede como se o fosse, como se quisesse ilustrar para a posteridade a sangrenta aversão do caudilho pelos últimos ameríndios de seu país. De fato, o constrito Martín Fierro, mandado de roldão para a fronteira, por um ato de arbítrio, participa das expedições militares contra os índios com a esportividade de um caçador. Não vê imagem de sentimento de criatura humana em seus inimigos. Se alguma vez lhes concede algum valor.”

Adiante, Guilhermino César, embora não negue o imenso valor da obra, completa o raciocínio, no que toca ao olhar do escritor em relação aos ameríndios: “José Hernández, oriundo da nobreza rural, político militante, não foi rosista, é certo, mas a política do Restaurador de las Leyes – continuada pelo presidente Avellaneda, no concernente à conquista do deserto – o poeta aceitou-a. No princípio de sua carreira, revelou em artigos de imprensa alguma simpatia pelo índio, mas em 1872, quando deu a público a primeira parte de Martín Fierro, seus antigos escrúpulos de consciência já haviam adormecido”, escreveu.

Discussões ideológicas à parte, como costuma ocorrer em torno das grandes obras, aquelas que se sobrepõem pelo seu valor artístico ao tempo e à ambição humana, o épico poema de José Hernández, que morreu em 21 de outubro de 1886, com 52 anos, continua a encantar gerações. Das traduções brasileiras, uma das mais conhecidas foi feita em 1972, por ocasião do primeiro centenário de Martín Fierro, pelo poeta gaúcho J. O. Nogueira Leira, lançada pela Editora Bels. Outra, conduzida pelo advogado e jornalista Leopoldo Collor Jobim, saiu em 1980, pela Universidade de Caxias do Sul.

No ano passado, pela Editora da Cidade, mais uma tradução do poema veio a público, desta vez feita pelo folclorista e escritor gaúcho Antônio Augusto “Nico” Fagundes, com coordenação editorial de Luis Fischer, para quem a obra está no centro da literatura gauchesca. “ Em certo sentido, o livro está para a Argentina como o romance de José de Alencar para o Brasil: é texto funcional, daquele que explica o que somos, dentro do paradigma de busca da identidade nacional, aquela coisa toda que os países do Novo Mundo precisam pensar”, escreveu. Ainda hoje, na Argentina, o livro de José Hernández, que já inspirou dezenas de peças de teatro, filmes, estudos em universidades e canções, continua a ser muito popular, podendo ser encontrado com facilidade nas livrarias.

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