A lírica do pensamento

por 06/12/2014 00:13
João Paulo

“Esta é – tenho quase a plena certeza – minha última coletânea de ensaios.” É assim que Ivan Junqueira apresenta, infelizmente de forma premonitória, seu Reflexos do sol-posto. O poeta se despede dos textos em prosa apontando que tem uma dívida com a poesia a ser escrita, que levava na alma. Sua despedida do ensaio, no entanto, se coloca no mesmo patamar de suas melhores obras críticas sobre a literatura brasileira e estrangeira, que vinha publicando desde os anos 1980.

O último livro é todo dedicado ao Brasil. Se em outros títulos Ivan Junqueira mostrou sua filiação à mais importante poesia da modernidade (como no livro Baudelaire, Elliot, Dylan Thomas), ao encerrar suas reflexões sobre a literatura escolheu como tema sobretudo os poetas brasileiros. O resultado é um painel que vai do romantismo aos nossos dias, com textos sobre autores canônicos e outros menos conhecidos.

A coletânea, como tudo que Ivan Junqueira publicou, é marcada pela erudição sem pedantismo, elegância da linguagem e interesse sempre em ler seus autores como poeta. Uma leitura “de dentro”. Para o ensaísta, cada autor expressa suas ideias a partir de uma opção literária. Não se trata apenas de descrever o que querem dizer, numa operação mais heurística que crítica, mas de entender a literatura em sua unidade básica: forma e conteúdo. Para isso, Ivan defende ainda o conhecimento do contexto histórico e filosófico em que surgem autor e obra.

O primeiro ensaio, Os cem anos do ‘Eu’, analisa a poesia de Augusto dos Anjos. É uma abertura que mostra bem o estilo de Junqueira. O texto é uma apresentação cuidadosa do poeta paraibano, a partir de sua vida e de seu único livro, Eu. O ensaísta narra os fatos mais relevantes da vida do poeta, passa em revista o que disse a crítica sobre seu livro, analisa as intuições que apontam para o expressionismo alemão e a sedução da art nouveau francesa em sua poética.

Localizado no limbo que precede o modernismo, Augusto dos Anjos, na leitura de Junqueira, teria se destacado, mais do que pela linguagem preciosa e por vezes de mau gosto, pela capacidade de expressar ideias. “O que de fato interessa em Augusto dos Anjos são a competência intrínseca e orgânica do verso e, tanto quando esta, algo que hoje já pouca gente se lembra e que tanta falta faz a qualquer poesia que se pretenda mais universal e duradoura do que rebentos enfezados de nossa andrógina e prolífica produção lírica: a noção, nele muito aguda, de que a poesia se se faz com palavras, como queria Mallarmé, faz-se também com ideias.”

Romantismo O mesmo método crítico, estilístico e biográfico está presente no texto dedicado a Gonçalves Dias, que concentra ainda a atenção ao contexto histórico do surgimento do romantismo no Brasil. Ivan Junqueira, ao analisar a poesia do autor de Os Timbiras, descreve o clima intelectual da época do surgimento do romantismo, a partir do que Machado de Assis classificou de “instinto de nacionalidade”, que sucede o período inaugural de tributo pago ao movimento na Europa.

A poesia de Gonçalves Dias é analisada pelo ensaísta a partir de suas três contribuições mais destacadas: o uso da língua e a reinvenção da linguagem; o indianismo; e a pulsão lírica. Para explicar sua leitura, Junqueira recorre aos poemas que melhor exemplificam cada um dos ângulos, com destaque para “I-Juca Pirama” e “Canção do exílio”. Na leitura do mais famoso poema do escritor, o ensaísta aponta: “Nunca se disse tanto com tão pouco, nunca se qualificou tanto, sem um único adjetivo qualificativo, o sentimento de nostalgia da pátria”.

Outros poetas estudados por Ivan Junqueira em seu livro são Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Alphonsus de Guimaraens Filho e Nauro Machado. Entre os ensaístas e críticos, avalia a obra de Álvaro Lins, Augusto Meyer e Antonio Houaiss. Dos contemporâneos, estão presentes Antonio Carlos Secchin, Izacyl Guimarães Ferreira, Antonio Brasileiro, Thomaz Albornoz Neves e Henrique Marques-Samyn. Além da literatura, Junqueira também escreve sobre as ideias de Gilberto Freyre, José de Alcântara Machado e Tarcísio Padilha.

Num livro em que a poesia tem lugar central, o autor não deixa a prosa de invenção de lado. Seus textos sobre José Lins do Rego e Gilda Oswaldo Cruz são leituras atentas de romances. Junqueira, sempre antenado, não perde oportunidade para defender as novelas de televisão, nas quais vê herança direta dos bons folhetins novecentistas. Machado de Assis também está presente. Seus contos são analisados pelo viés da sensualidade e da coloquialidade da linguagem, a partir de uma fina leitura de “Uns braços”.

Reflexos do sol-posto é um caderno de escritos de um autor maduro, sobre leituras que lhe foram preenchendo os dias e que, no fim da jornada, decide dividir. Um gesto de generosidade do escritor, que deixa seus leitores na companhia da inteligência da crítica e da sensibilidade da poesia.

REFLEXOS DO SOL-POSTO
• De Ivan Junqueira
• Editora Rocco
• 304 páginas, R$ 34,50

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