Retrospectiva do pintor Carlos Bracher reúne trabalhos de várias fases do artista

Obra em exposição no CCBB traz paisagens de Ouro Preto, autorretratos e homenagem a Van Gogh

por Carlos Perktold 22/11/2014 00:13
Beto Novaes/EM/D. A Press
O pintor Carlos Bracher, com autorretrato, em frente ao Centro Cultural Banco do Brasil, em BH. Mostra segue para São Paulo, Rio, Brasília e Ipatinga (foto: Beto Novaes/EM/D. A Press)
Conservar amigos de infância é sempre uma vantagem afetiva. Se dois deles são talentosos e têm a mesma paixão em comum, com certeza farão parcerias ímpares. É o caso de Carlos Bracher e Olívio Tavares de Araujo, amigos de sempre. Olívio é jornalista, conhecido curador e crítico de arte. Bracher dispensa apresentações. Ambos estão reunidos novamente no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte, em uma das mais belas exposições de pintura deste ano. Ela seguirá para São Paulo, Rio, Brasília e terminará em setembro de 2015 em Ipatinga, no Vale do Aço. O “novamente” é por causa de outras curadorias do mesmo amigo pintor. A diferença nesta é que houve a interferência de Larissa, filha do artista juiz-forano e responsável pelo belo acontecimento. Os três fazem um santíssimo trio intermediado pela beleza, espalhada pelas paredes do terceiro andar do CCBB.

A exposição é uma retrospectiva completa e demonstradora da coerência da trajetória do bravo pintor, professor de si mesmo. Ele faz a sua pintura de cavalete de óleo sobre tela, a mesma técnica que já asseguraram ao leitor que morreu há anos. Todos os mais de 80 quadros não somente asseguram o quanto ela está viva, como questionam o que tem sido visto em algumas pinturas de gente esforçada, mas sem talento. Ali se pode comprovar o quanto ela pode ser esplêndida e silenciosa, como uma santa rezando na catedral. O leitor deve se colocar defronte dos grandes corredores da exposição e notar que, se não fosse pelo som dos sapatos dos espectadores no assoalho do prédio, o silêncio a emanar delas é eloquente e engrandecedor.

Nem mesmo o mais neófito em pintura deixará de sentir e notar a unidade dentro da variedade de seus trabalhos. Unidade é aquele “borogodó” que o poeta, o escritor, os pintores têm e que os críticos chamam de estilo. Consiste na leitura e na percepção imediata de que se trata de uma poesia de Carlos Drummond de Andrade, um texto de Machado de Assis ou a pintura de um Portinari, contendo elegância e beleza. É o Bracher talentoso, que, descobrindo seu caminho, nunca mais o abandonou, doando ao Brasil um acervo de pinturas que percorrem a Europa neste momento em outras exposições na Suécia, Espanha, Luxemburgo e Alemanha.

Variedade são os diferentes conteúdos, como flores, marinhas, cidades históricas, usinas de aço, teares, caminhões e naturezas-mortas. Bracher é um criador sem fim, capaz de fazer dezenas de leituras da mesma Ouro Preto de sempre, transportada para o suporte de tela em espessas camadas de tinta. Se o leitor se colocar muito perto do quadro, interessado em descobrir essa espessura e o resultado dela, perderá a melhor parte do seu trabalho: a simplicidade enganosa e a perspectiva de mestre. Colocando-se de frente e um pouco distante, perceberá que essa mesma simplicidade é a mola mestra para o quadro que surgiu de sua mão, pincel e tintas e cuja composição já estava visualizada no consciente do artista. É a única explicação para quem o viu pintar em casa ou no vídeo da mesma exposição e se surpreende com o surgir de um retrato personalíssimo ou de uma Ouro Preto leve, como se o pintor fosse um laboratório e a paisagem fosse a revelação de uma fotografia.

Como retrospectiva não poderia ser mais completa: há quadros da década de 1960, quando ele começou e fez sua primeira exposição e já são demonstradores da sua capacidade inventiva. Sorte de quem acreditou nele naquela década. Uma catedral, um retrato do amigo curador, um autorretrato ou ainda a pintura de um caminhão Mack ou a locomotiva aliviando sua pressão são exemplos de um passado repetido no presente. “Repetição” na qual há uma diferença constante, daí a unidade de seus trabalhos. Notará ainda a preferência do pintor pela grande superfície na qual ele e os seus pincéis se sentem à vontade, como se ambos fossem um escritor descrevendo uma cena em parágrafos bem redigidos ou um flautista em longas frases musicais.

Em qualquer época, cada quadro é uma estrofe de um poema com começo, meio e fim e a retrospectiva é o fechamento de um soneto shakespeariano. Seus trabalhos da década de 1970 são reconhecíveis a distância e são um tributo às montanhas de Minas Gerais. Em 1990, Bracher expôs no Museu de Arte da Pampulha uma série de 100 quadros, um marco biográfico, resultado de uma homenagem a Van Gogh, paixão de todos nós, que o pintor fez ao holandês. Alguns quadros dessa exposição estão nesta retrospectiva e, passados 24 anos, despertam a mesma paixão daquela década.

Ateliê

A mostra surpreenderá ainda por duas montagens inusitadas. A primeira é a reprodução do seu ateliê de Ouro Preto, transposto no primeiro andar do CCBB, com todos os detalhes da sua casa na Rua Coronel Alves, na velha Vila Rica: o cavalete “sujo” de tinta ressecada se contrapõe aos livros de arte e uma reprodução do painel Guernica, de Picasso, no alto. Conhecê-lo agora é o mesmo que vê-lo em Ouro Preto.

A segunda é a reprodução do hall de entrada do castelinho dos Bracher, em Juiz de Fora, no qual ele passou sua infância e parte da juventude. Ali ele viu o seu talento ser incentivado pelos pais, apaixonados pela arte e pela música. Nas paredes, alguns quadros de pintores amigos ajudam a compor a afetiva sala da conhecida família de Juiz de Fora.

Há por fim uma observação e ela é de caráter comercial. Os colecionadores e o público interessado sabem que os quadros de Bracher não têm custos altos como os de certos colegas de paleta da mesma idade que a dele. Tanto melhor para quem se interessa por seus trabalhos e ainda não os tem. Arte e mercado de arte são linhas paralelas que não se encontram nem no infinito. Preços de quadros são mistérios daquele mercado, não da qualidade de sua pintura, sempre magistral.

Carlos Perktold é psicanalista. Integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais

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