Cidade das letras

por 15/11/2014 00:13
Marcos Vieira/EM/D.A Press
Marcos Vieira/EM/D.A Press (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press)
João Paulo

Belo Horizonte está sediando dois eventos ligados ao livro, o Circuito Literário da Praça da Liberdade e a Bienal do Livro de Minas. São iniciativas distintas, que de certa forma se complementam. Enquanto o circuito é o momento do autor, que ganha espaço para falar de suas obras e entrar em contato com o leitor, a bienal é um evento de mercado, que tem como principal personagem o livro.

Os dois encontros têm sua necessidade atestada pelo contexto da leitura no Brasil: há poucas bibliotecas, o livro é caro, as livrarias estão cada vez menos presentes e os programas de incentivo à leitura não pegam embalo em meio a outras políticas públicas para a cultura. Além disso, numa civilização da imagem banalizada, a leitura está em baixa. Por isso, colocar autor, livro e leitor em evidência é sempre um bom propósito.

Os eventos literários estão em busca de uma identidade. De um lado, as festas no modelo da Flip, em Paraty (RJ), criaram um padrão com muito charme e mídia. No entanto, tornaram-se uma espécie de molde vazio que se reproduz de forma pouco criativa em outras localidades, fazendo com que alguns autores percorram o Brasil de Norte a Sul durante todo o ano, contando, muitas vezes, as mesmas histórias.

É claro que para uma cidade que recebe os escritores pela primeira vez, o momento é importante e aquele contato tem tudo para se tornar uma chama de estímulo à leitura. Mas, na verdade, não se pode dizer que algo de novo está sendo criado. Não se alcança a profundidade de um simpósio acadêmico nem o potencial comercial de uma feira especializada. As festas e festivais, geralmente localizadas em cidades históricas, praianas ou turísticas, levam a literatura como um atrativo a mais em meio a outros negócios.

Na outra ponta, as bienais se organizam como um grande evento comercial, o que mostra certa maturidade do setor, que não foge de mostrar com seu potencial econômico. Mas bienais e feiras, em razão mesmo de sua vocação, concentram-se mais no objeto livro do que no processo ampliado que envolve sua criação, produção e distribuição.

A realização conjunta do circuito e da bienal em BH permite avaliar esses e outros modelos e apontar para a necessidade de maior profissionalização do setor. O primeiro desafio, patente pela própria presença dos dois eventos ao mesmo tempo, é vencer a desarticulação. Não se pode falar em livro, leitura, incentivo, autor e leitor sem que todos os personagens, instituições e sujeitos partilhem do mesmo propósito.

Para que Belo Horizonte e outras cidades instituam de fato uma política para o livro, precisam estar juntos os setores de educação e cultura, as bibliotecas, a indústria do livro, as universidades e institutos, os centros de estudo, a representação de leitores, os autores em toda sua diversidade, as grandes editoras, os selos independentes, as empresas promotoras de eventos, todos os segmentos envolvidos com o turismo e a universidade.

Vestibular Trata-se de um esforço coletivo que tem muitas pontas para agir. Há, por exemplo, algumas perdas incompreensíveis de espaço para os livros ao longo do tempo. Muitos devem se lembrar de que, há alguns anos, os vestibulares em todo o país indicavam uma lista de títulos a cada ano. Os estudantes tinham uma relação de 10 livros para ler para as provas, o que se desdobrava em outros, à medida que o estudo avançava.

Com o tempo, a lista minguou para cinco livros, três e, hoje, não faz parte da exigência de vestibulares ou do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Mesmo que se justifique que a leitura é presumida em outros conteúdos, houve uma mensagem enviada aos jovens sobre o valor da leitura no momento de se avaliar a formação do ensino médio. Retomar esse debate com o setor educacional parece ser um caminho viável de reconsideração da importância da literatura na formação humanística do aluno, sem prejuízo das outras estratégias.

Outra redução do espaço dedicado aos livros tem sido observada na diminuição do horário de funcionamento das bibliotecas públicas. É curioso que o mesmo Circuito Cultural que promove um evento ligado a livros e autores tenha encurtado o tempo em que a Biblioteca Pública Estadual fica aberta para atender leitores e estudantes da cidade. Na contramão do estímulo ao saber e à leitura, a instituição reduziu seu horário de funcionamento este ano. O que é um absurdo.

Sem falar dos livros que eram vendidos a baixo custo, em razão das compras governamentais em escala. Quem não se lembra dos clássicos de Machado de Assis, que vinham chancelados com o convidativo aviso: “O preço se tornou possível pelo aumento da tiragem e consequente queda dos custos industriais”. No caso de livros eletrônicos, os descontos podem ser ainda mais atraentes para o leitor e, no caso de obras em domínio público, disponíveis gratuitamente em edições de qualidade (e não em PDFs ou obras digitalizadas toscamente).

Várias outras possibilidades podem surgir desse pacto ampliado pela leitura. Feiras, fóruns e festas têm sua cota de responsabilidade, mas não esgotam um programa que tem uma dívida secular. Podemos pensar até mesmo em outros eventos, ao feitio do Bloomsday, que celebra anualmente em Dublin, na Irlanda, a obra de James Joyce. Quem sabe um dia dedicado ao Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, com passeios pelo Prado, Centro e Lagoinha; ou um circuito pelas ruas de Encontro marcado, de Fernando Sabino, que passe pela Praça da Liberdade e pelo Minas Tênis Clube, entre outros endereços; ou, mesmo, o maior de todos, o grande périplo Pedro Nava pela memória de BH e Juiz de Fora?

Livros, autores e leitores merecem bienais, festas, encontros, fóruns e o que mais for inventado. Mas merecem também um esforço político e solidário para criação de medidas estruturantes para o setor. Se tudo der certo, a festa vai ser cada vez melhor e mais frequentada.

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