Jornalismo vivido

O mais brasileiro dos gonzos, Arthur Veríssimo reúne suas reportagens em livro. Em primeira pessoa, vai da sabedoria indiana sobre o sexo ao benzedor do Vale do Cariri

por 08/11/2014 00:13
Noel Celis/AFP
Noel Celis/AFP (foto: Noel Celis/AFP)
Ângela Faria



Arthur Veríssimo é o porta-voz nacional do jornalismo gonzo. Explica-se: não basta ser repórter, tem que participar. Essa história de “gonzice” começou com o norte-americano Hunter S. Thompson (1937-2005), autor de memoráveis relatos sobre os EUA e ícone na revista Rolling Stone. Ele se misturou aos foras da lei Hell’s Angels para revelar os bastidores da gangue de motociclistas; brindou os americanos com o lado B das campanhas eleitorais, em 1972, ao “entregar” os bastidores do arranca-rabo entre George McGovern e Richard Nixon; e virou símbolo da contracultura.

Com seu proverbial bom humor, Veríssimo abrasileirou o legado de Thompson. Gonzo! (Realejo dos Livros) traz 30 reportagens escritas para a revista Trip entre 1980 e 2013. O livro tem o mérito de dar “sustança” à trajetória do carioca. Acostumado a doses homeopáticas de Veríssimo na Trip, diluídas mês a mês, o leitor agora tem em mãos um vigoroso conjunto de aventuras. Haja fôlego.

Em 252 páginas, o jornalista nos prova que o mundo é mesmo uma caixinha de baitas surpresas. Elas podem estar tanto aqui pertinho, no Edifício Demoiselle, treme-treme paulistano com 276 “apertamentos”, quanto no Paquistão, no coração do Peru, no Camboja ou no meio dos índios da Amazônia. Para começar, Veríssimo é um cara que gosta de viver. Pratica ioga, respeita xamãs, não exibe ares sabichões diante da realidade que reporta, descreve os micos em que se meteu.

Aos 55 anos, esse sujeito rodado gosta mesmo é de gente. Você conhece Khajuraho? Pois é de lá que Arthur nos revela templos eróticos e um pouco da sabedoria indiana sobre sexo. Já ouviu falar de Kulusuk? O gonzo esteve lá atrás de um xamã e de tambores capazes de levar ao transe profundo – sem drogas. Nós, mineiros, que tanto prezamos a semana santa, tomamos tenência da via-crúcis deste século 21. Ela se estende pela cidade de Manila, onde fiéis se autoflagelam com coroas de espinhos e cordas. Algozes desfilam pela capital filipina munidos de giletes, encarregados de cortar corpos, que, pouco depois, serão açoitados. Na favela de Cutud, sob uivos bíblicos, homens são crucificados. As mãos “ganham” pregos de cinco polegadas em agradecimento às graças alcançadas.

Elefante


Veríssimo não é “imparcial”. E sabe escrever. Apavora-se com as lufadas de sangue em Manila, ingere beberagens em rituais (e vomita a valer), mete-se em cemitérios de Madagascar onde o povo retira defuntos queridos da tumba para “bater o pó” e celebrar a vida. Diante de tanto sufoco, há mordomia também: o gonzo recebe massagem, lá no baixo ventre, da tromba (sic) de um elefante.

Todos esses casos não irrompem como um desfile de excentricidades de riponga doidão, chegado à velha e boa “viagem”. Arthur sabe respeitar o povo que o recebe. Em vez de incorporar aquela persona “jornalista padrão”, baixa a guarda e cai na vida com uma curiosidade quase ingênua. À sua maneira, é um homem sagaz. Safo, livra-se de enrascadas de cinema.

Aventuras brasileiras se alternam com vilarejos perdidos no mundão da Ásia ou das Américas. Na ilha de Papua, ele nos apresenta as múmias defumadas. E tem a honra de experimentar – com direito a foto – o próprio koteca, um gigantesco protetor peniano. Em Sampa, fantasia-se de porquinho da Parmalat para animar festa infantil, desentope fossas, vira garçom de leão e limpa vidraças de arranha-céu.

Aliás, o gonzo amarelou, mas isso não ocorreu na selva ou no meio da cruficicação de filipinos. Em plena São Paulo, o repórter perdeu a briga com o vento e foi arremessado sem dó na parede enquanto enxugava janelas do quarto andar de um prédio. Daquela vez, foi punk.

Cariri


O espiritualista Arthur Veríssimo conheceu o guru Osho, de quem foi discípulo. Uma de suas reportagens nos apresenta o brasileiro Sri Prem Baba (ex-Janderson Fernandes de Oliveira), que mora em Rishikesh, na Índia, e tem seguidores pelo mundo. Mas bacana, mesmo, é quando ele conclui que o melhor lugar do planeta pode ser aqui e agora. Vale a pena segui-lo pelo Vale do Cariri para vê-lo diante do benzedor sergipano José Alves Feitosa, que o livrou de algumas cargas do passado.

O nosso bravo repórter viajou pelos 14 cantos do globo, conheceu sadhus indianos, budistas tibetanos e vudus haitianos. Mas, graças à reza de seu José, pôde se redescobrir em pleno Ceará. “Em se tratando de alma, só deixo o meu Cariri no último pau de arara”, conclui o gonzo brasuca.

GONZO!


. De Arthur Veríssimo
. Realejo Livros, 252 páginas, R$ 39,90

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