A vida é um absinto azul

Em seu novo livro, Hosana na sarjeta, Marcelo Mirisola não dá tréguas para seu olhar, ao mesmo tempo ferino e desencantado sobre os homens e a sociedade

por 08/11/2014 00:13
Arquivo pessoal
Arquivo pessoal (foto: Arquivo pessoal)
André di Bernardi Batista Mendes

O paulista Marcelo Mirisola acaba de lançar, pela Editora 34, Hosana na sarjeta, livro sobre caminhos e descaminhos, livro sobre “encontros, desencontros e despedidas irremediáveis”. Este bom escritor mostra um estilo despojado e prova que continua perverso, dentro de uma lucidez feita de escárnio e desprezo. As desventuras começam na frente da lendária Boate Kilt, em São Paulo. Mirisola embarca nas desventuras e peripécias de um certo MM (Marcelo Mirisola?) e sua relação com duas mulheres, Paulinha Denise, uma Capitu mareada, loira descolorida, com problemas de identidade, e Ariela, a “outra”, Lolita casada, verdadeira mentira ambulante. Cabe neste contexto um diamante contrabandeado, um réveillon muito louco no Rio de Janeiro. Está pronto, portanto, o cenário.

Hosana na sarjeta também é um livro sobre escolhas. Escolher é muito difícil. Escolher encolhe, restringe, corta o que era de natureza ampla. É assim, é isso: a gente traça um caminho, Deus escarnece e escolhe outro. Daí para inventarmos, para cair no extraordinário é um pulo ou um passo que seja. No romance, o tal diamante é encontrado num garimpo clandestino e surge o convite para a fatídica festa numa cobertura sensacional.

Os estelionatários também amam. Os estelionatários também amam? Haja versos e controvérsias. Mirisola escreve para desencontrar, tal como o seu personagem. Porque existe uma certa soberba nas ruas, mas principalmente nas pessoas (e principalmente nas mulheres, nas putas) mais sórdidas e fodidas de bolso e espírito, esse luxo que adquirimos, que vamos conquistando aos pulos. “Inferno a gente adquire”. Sade, Villon, Verlaine, Baudelaire, Bernhard, Genet. O problema é que “as pessoas querem ser felizes; mais do que querer, elas precisam do dr. Shinyashiki e do Padre Marcelo.”

Mirisola não escreve buscando verossimilhanças, a vida é mais curta, mais inquietante e mais inacreditável que todas as palavras. A vida não cabe no susto, no espanto, não cabe nas palavras mar ou florezinhas. Só mesmo Bach, Beethoven, e duas cervejas, para começar.

O prazer é uma das alegrias mais perigosas. Marcelo Mirisola escreve com prazer e desenvoltura. O danado inventou, do seu jeito, um tanto torto, uma história de amor, de amores. A vida é uma grande mentira. Tudo traz escondido dentro dos bolsos pelo menos uma grande mentira. Os escritores da estirpe de Marcelo Mirisola sabem muito bem desse engodos. E eles dizem, sem pudores. Eles mentem e fingem que sabem. A vida é uma enorme mentira, mas sem a sordidez, a iniquidade, sem a feiúra da fraude.

Marcelo Mirisola também escreve sobre a solidão.

Porque aquele que ama fica entregue, chafurdado na lama, a esmo e adorando horrores. Mas existem presságios. Uma das entidades de Paulinha Denise faz o alerta: “Você nunca vai amar ninguém na vida”. Mirisola transita entre paradoxos, indo e vindo, num carrossel de apenas círculos. O amor, a vida é um absinto azul. Um dia, quem sabe, todo esse medo, toda essa bebedeira, toda essa ressaca vão terminar. Só que não. Porque não querem os que bebem, porque existem carências e incompletudes. São tantas as mensagens, os versos, os livros e as histórias. Um dia, quem sabe?

Tudo que vem do coração das plantas não pode, não deve ter essência maligna. Não sabemos de onde chegam os beijos e a poesia. Temos medo das palavras tapa, desprezo, desdém. Marcelo Mirisola perdeu toda a compostura e todo o receio. Mirisola é, antes de tudo, um exímio provocador e tem um sarcasmo, um humor ácido para os momentos mais impróprios e improváveis. Incoerência e encanto. Tudo é risível nessa nossa babel feita de dúvidas e desconcertos.

Inquietude Mirisola escreve e ri demais e aponta para aquelas pessoas caminhando, sem rumo, sem sair do lugar, nas academias da vida, subindo e descendo escadas artificiais que não sobem, que não descem. Tudo é risível.

Marcelo Mirisola nos apresenta um romance onde tudo é quase. As quase certezas propiciam inquietudes e muitas ideias de fuga. As mulheres do livro são quase dignas. O dia a dia, as madrugadas, quando quase chove, indicam os descaminhos para uma felicidade feita de vidro, uma felicidade feita de névoa, fúria e fragilidade. O amor escarnece e quase aparece, quase acontece disfarçado nas almas de Paulinha Denise e Ariela. O coração é uma arma, é um revólver carregado. O amor ativa e desengrena – o amor desarma – todos os corações ansiosos. O amor é o maior porre da vida de todos os personagens de Marcelo Mirisola.

O amor vive nas nuvens escuras. O problema é que quase nunca chove. Quando acontece, de cair as águas, a cidade, apesar de perfumada, fica quase sempre triste e melancólica. Ficamos distantes e emburrados. Pois a espera, pois a postura das sementes nada nos ensina sobre os discernimentos da paciência. Sim. O amor é uma farsa. A mais absurda, a mais certa, a menos consistente. E não. O amor é um embuste. O melhor deles.

Velhaco, o amor às vezes cresce também no muito ordinário, no desprezível, no insignificante, nas almas pífias de MM, Brecão (o amigo louco), Paulinha Denise e Ariela. O amor pode ser também barango, reles, grosseiro e vil. O amor são estes relâmpagos, estas descargas elétricas que embelezam, que tornam todos os cabelos brancos.

Um tanto cínicos, os elogios, as exaltações feitas por Mirisola seguem, num paradoxo estranho, uma trajetória marcada pelo inverso. Do céu ao chão, os acontecimentos do romance chegam, já nascem carregados de escárnio e intensidades. Matéria-prima para ótimas histórias, o escritor descreve, mensura outro tipo de altura. É justamente na sarjeta que existem os maiores abismos e vertigens.

HOSANA NA SARJETA
De Marcelo Mirisola
Editora 34, 144 páginas, R$ 32

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