Teatro feito por música

Montagem do espetáculo O grande circo místico destaca o sentido dramatúrgico do discurso musical. Atores, bailarinos, cantores e músicos atuam em consonância, em busca da valorização do efeito cênico

por 08/11/2014 00:13
Leo Aversa/Divulgação
Leo Aversa/Divulgação (foto: Leo Aversa/Divulgação)
Ernani Maletta


Alguém muito atento às normas da língua portuguesa poderia estranhar a expressão “a música do teatro”, na qual o termo música, diferentemente de teatro, foi grafado com inicial minúscula. Essa diferença não foi ao acaso e é muito significativa para o que vamos discutir a seguir, pois a música à qual me refiro não é a arte música, e sim um dos discursos que compõem a polifonia que caracteriza o teatro. Parece confuso? Nem tanto.

Esse tema é o foco principal de toda a minha trajetória artística e acadêmica, que originou minha tese de doutorado – que, por sua vez, é a base do livro Atuação polifônica: princípios e práticas, a ser publicado no primeiro semestre de 2015 pela Editora UFMG. Trata-se de um conjunto de princípios que sustentam meu trabalho no teatro, desde as primeiras experiências com o Grupo Galpão, em 1994, até culminar no privilégio de ter sido escolhido por Edu Lobo para fazer a concepção e direção musical da recente montagem teatral de O grande circo místico, sua obra-prima em parceria com Chico Buarque.

As interações entre música e teatro podem ocorrer por pontos de vista diversos: pela participação, quando um número musical, como tal, é inserido na cena teatral; pela interdisciplinaridade, quando o teatro se apropria de procedimentos e métodos que não seriam próprios dele, mas da música; e pela polifonia, quando se considera a existência, no teatro – arte que compreende um entrelaçamento de múltiplos discursos artísticos –, de um discurso musical que é próprio dele, como um dos fios que tecem a trama teatral. No meu percurso profissional, dediquei-me a estudar o teatro e contribuir criativamente na montagem de espetáculos, tendo com base a sua natureza polifônica, a multiplicidade de vozes que o compõem, entre as quais, está o discurso musical.

A complexidade que pode transparecer quando proponho uma distinção entre Música e música se explica por uma confusão histórica de nomenclatura. Música é a tradução do termo grego mousiké, conceito oriundo da Antiguidade que englobava campos que hoje identificamos como poesia, dança, matemática, física e filosofia, entre outros. Posteriormente, quando esse conceito complexo se desmembrou nesses diversos campos do conhecimento artístico e científico, uma parte, correspondente à nossa atual arte música, preservou seu nome, de modo que se tornou habitual relacionar o adjetivo “musical” aos conceitos e parâmetros dessa arte, gerando a falsa ideia de que eles seriam legítimos apenas dela.

Na verdade, o adjetivo musical vai muito além da arte que denominamos música, de modo que muitos dos conceitos e parâmetros que qualificamos como musicais são igualmente intrínsecos ao teatro e às outras artes. A diferença está na forma pela qual os conceitos são ressignificados e aplicados em cada campo específico, vinculando-se às matérias-primas e aos objetivos de cada campo. Se o conceito de ritmo, por exemplo, no universo musical se refere às durações dos sons, no universo teatral diz respeito também às durações das ações cênicas, não necessariamente sonoras, envolvendo movimentos, formas, luzes e imagens.

Esse foi o princípio geral que orientou a concepção musical de O grande circo místico: dar sentido dramatúrgico aos intervalos, melodias, acordes e harmonias magistralmente criados por Edu Lobo, bem como aos arranjos originais por nós compostos, para além do sentido já criado pela magnífica poesia de Chico Buarque. Tenho o privilégio de afirmar que a minha pesquisa, minha tese, os princípios da atuação polifônica, minha prática e minha metodologia de trabalho foram escolhidos como referência para a concepção musical do espetáculo.

Minha primeira proposta foi a de que, independentemente da presença ao vivo de uma banda formada por excelentes instrumentistas, as músicas deveriam nascer da cena e jamais se apresentarem como um número musical que direcionasse o foco para o som ou para o virtuosismo musical dos artistas. Os números musicais só se justificariam quando fizessem sentido para a dramaturgia, por exemplo, quando as personagens se apresentam para um “público-personagem” – e não quando os atores se apresentam para a plateia.

Para tanto, era fundamental que todos os atores, além de se expressarem sozinhos e coletivamente por meio do canto, o fizessem tocando instrumentos musicais, o que pareceu a todos uma ousadia, tendo em vista que, dos 17 atores que formavam o elenco, havia apenas dois com formação musical e 11 que jamais haviam sequer experimentado tocar um instrumento.

A estratégia que proponho para alcançar esses objetivos, que utilizamos no decorrer de todo o processo de montagem e que foi muito bem recebida por todos, baseia-se em três procedimentos: distribuir para dois, três ou mais atores o que um músico profissional faria sozinho; perceber os limites técnicos apresentados e aproveitá-los como orientadores para a escrita dos arranjos; valorizar qualquer resposta dos atores, mesmo que seja a mais simples execução de um único som ou acorde, e incorporá-la aos arranjos. Tudo isso com base no princípio de que as ações de cantar e tocar um instrumento em cena devem ser ações cênicas, que não dependem das técnicas tradicionais nem do virtuosismo que os músicos profissionais buscam. Devem seguir os princípios do teatro e devem ter uma função dramatúrgica que justifique a sua presença, com base no desejo e na liberdade de se manifestar.

Não poderia deixar de citar que tudo isso só foi possível porque contei com a parceria de três músicos e parceiros, que abraçaram a concepção por mim proposta e, sob a minha direção, integraram a equipe musical do espetáculo, dispondo-se a empregar seu talento a favor dela: Gabriel Mesquita, João Bittencourt e Bena Lobo. Certamente, incluem-se nessa parceria as produtoras Maria Siman e Bel Lobo e o diretor João Fonseca.

Libertação plena Durante todo o período de ensaios, foram aplicados exercícios e procedimentos polifônicos com base nos princípios referidos em minha tese. A busca do que chamei de libertação plena da voz foi a base do trabalho de preparação vocal, naturalmente com base na metodologia de Francesca Della Monica, magnífica artista e pesquisadora italiana com quem estabeleci uma parceria desde 2010, quando realizei com ela o meu pós-doutorado. Estive especialmente atento quanto à valorização do desejo e da disponibilidade dos atores para tocar os instrumentos independentemente de qualquer habilidade que demonstrassem.

Uma das estratégias baseadas nos referidos princípios, por meio da qual obtivemos excelentes resultados, está diretamente relacionada com a percepção de uma função dramatúrgica para os intervalos melódicos a serem cantados, bem como das estruturas harmônicas que os apoiam. A respeito disso, a canção Beatriz é exemplar: para cada uma de suas complexas frases melódicas, foi criado um sentido dramatúrgico, próprios do universo circense e das propostas para a encenação, que justificou cada um dos intervalos e as relações entre eles.

Para os arranjos vocais e instrumentais escritos para o elenco, em primeiro lugar, deveríamos descobrir o sentido da existência deles. Devemos nos lembrar que um arranjo vocal implica o entrelaçamento de pelo menos duas vozes. Geralmente, ele entra em cena quando um número razoável de atores canta junto. Ora, um grupo de pessoas pode muito bem cantar em uníssono, o que nos leva a uma interessantíssima questão: que função dramatúrgica tem um canto em uníssono? E, nesse aspecto, qual a diferença entre um grupo de pessoas cantar em uníssono ou a múltiplas vozes distintas?

Independentemente da possibilidade de haver mais de uma resposta para cada uma dessas perguntas, a mim importa, como diretor de uma equipe de criação musical, determinar o meu ponto de vista sobre a questão. E essa resposta tenho desde que comecei a trabalhar o canto coletivo em teatro: um grupo de personagens que canta em uníssono pretende, dramaturgicamente, evidenciar que, pelo menos naquele momento, todos desejam dizer a mesma coisa e da mesma forma. Por sua vez, personagens que cantam a mais de uma voz querem evidenciar que, independentemente de estarem ou não de acordo, cada um quer manifestar seu ponto de vista particular sobre o tema em questão.

Outras duas orientações foram referência para a criação dos arranjos vocais: deveríamos, ao máximo, construir discursivamente as outras vozes melódicas, buscando justificar os intervalos, curvas ascendentes ou descendentes, ritmos e dinâmicas, com base no ponto de vista que se quer manifestar; e deveríamos, sempre que justificável, sugerir por meio do arranjo o risco ou virtuosismo circenses, isto é, aquela sensação de perigo iminente que o artista de circo nos faz sentir, pelo risco que ele sugere correr na execução de uma cena que exige dele grande perícia. A propósito, destaco o trabalho da coreógrafa Tânia Nardini, que, com uma incrível sensibilidade musical, criou coreografias que valorizam significativamente as estruturas musicais e muito contribuem para a precisão de sua execução.

Não caberia aqui uma análise de cada uma das cenas, mas faço questão de finalizar destacando um dos momentos do espetáculo que mais representa a combinação entre a música como discurso teatral, como criadora do risco e como apresentação de virtuosismo. Trata-se de uma longa cena que conclui o primeiro ato, formada por três subcenas: a tragédia do clown, morto pela violência da guerra; o desabado emocionado do administrador do circo e da mulher barbada, que se despedem de seu amigo morto; e o desespero de Beatriz, que, depois de assistir à morte do clown, vê-se perdida em um campo minado, condenada a também morrer, desesperançada de reencontrar Frederico.

Todos os atores estão em cena, criando múltiplas imagens entrelaçadas que representam tanto o circo – por meio do Administrador e Barbada, que valsam pelo espaço – quanto a guerra – por meio de um campo minado que os atores simulam equilibrando pratos que giram sobre uma vareta. Em meio a isso tudo,  está o drama de Beatriz e Frederico, que, apesar de não conseguirem se reencontrar, sentem de alguma forma a presença um do outro. Essa polifonia dramatúrgica compreende um discurso musical, por meio de um arranjo bastante ousado, ao qual demos o nome de mosaico, que não apenas reapresenta frases de todas as músicas presentes no primeiro ato, mas também as entrelaça de uma forma cada vez mais complexa.

Tenho tido continuamente um retorno entusiasmado de muitas pessoas que assistem ao espetáculo, em especial de músicos, que percebem com clareza a função dramatúrgica que as músicas assumem por meio dos arranjos e pela forma que os atores utilizam para cantar e tocar, privilegiando a palavra e dando sentido aos parâmetros musicais. O orgulho que tenho deste trabalho não poderia ser maior.

Ernani Malleta é pesquisador, professor de artes cênicas e diretor musical.

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