Imagens que pensam

Artistas contemporâneos elegem suas principais influências, que vão do século 15 aos anos 1960. Ensaios de Camille Paglia retomam a inspiração de livros anteriores, sempre com boas surpresas

por 01/11/2014 00:13
Onze da manhã, óleo sobre tela de Edward Hopper, de 1926/Sesc/Reprodução
None (foto: Onze da manhã, óleo sobre tela de Edward Hopper, de 1926/Sesc/Reprodução)
João Paulo



O livro Pontos de vista – Artistas e seus referenciais (Edições Sesc), organizado por Simon Grant, estabelece um interessante diálogo entre artistas contemporâneos e suas fontes de inspiração. O autor, historiador da arte e editor da revista Tate Etc, convidou 78 artistas para escreverem sobre obras e criadores que de alguma forma foram referência em seus trabalhos. A ideia era traçar uma genealogia da arte atual. O resultado, como era de se esperar, mostrou um intensa dispersão no tempo, nos estilos e na geografia.

Os artistas selecionados citaram obras que vão do século 15 aos anos 1960, estabelecendo algumas conexões aparentemente impensáveis, como a do artista brasileiro Vik Muniz (1961) com o pintor flamengo Rubens (1577-1640), de quem elege Retrato de Clara Serena Rubens como obra marcante em sua formação. Para ficar nos brasileiros convidados, a artista Beatriz Milhazes (1960) destaca a influência de um mestre ainda mais antigo, Hans Memling (1430-1494), por meio da pintura Retrato de um homem com cravo.

O organizador destaca que, entre os artistas, há muito mais generosidade que impulso destruidor ou agressivo em relação ao passado. Algo que se aproxima mais de um diálogo de colegas de prática do que de uma disputa de contendores em nome de uma verdade única. Mesmo com a presença significativa de mestres do passado, quase metade dos criadores convidados selecionou obras do século 20 como sendo suas referências mais importantes.

Simon Grant chama ainda a atenção, entre as obras escolhidas pelos artistas, para a presença de trabalhos que fazem parte tanto da formação estética quanto existencial. “As conexões mais impactantes são as dos grandes artistas que encontraram seus selecionados durante a infância.” Mesmo que a forte impressão tenha se dado, muitas vezes, mais pelo horror que pela beleza.

Os textos dos artistas trazem muitas camadas de sentido. Em primeiro lugar, a própria leitura da obra escolhida, analisada por um viés que é sempre pessoal, mas que estabelece um padrão de comunicação com o leitor no campo da interpretação. É uma leitura de artista, com olhar sagaz para detalhes e significados que muitas vezes se perdem no hábito dos julgamentos canônicos. Além disso, trazem observações de natureza sociológica (a relação com os museus e a questão dos originais) que são temas fundamentais na arte contemporânea.

E há também o impulso para conhecer um pouco dos bastidores do trabalho criativo, como revela por exemplo Beatriz Milhazes. A artista brasileira, em seu texto sobre Hans Memling, conta que tem em seu ateliê cartões feitos por Tarsila do Amaral e Matisse que “são constantes fontes de estímulo e pesquisa”. No mesmo sentido, Gregory Crewdson declara que as pinturas de Edward Hopper foram inspiradoras para suas fotografias.

Pontos de vista pode ser lido em qualquer ordem ou aberto ao acaso em busca do artista preferido do leitor. Mais que um mapa de influências confessas (ou de “angústia da influência”, na expressão de Harold Bloom), é uma porta de entrada para um diálogo sem fim.



Do clássico ao pop

Bastaria o nome de Camille Paglia para fazer de Imagens cintilantes – Uma viagem através da arte desde o Egito a Star wars (Apicuri) um livro interessante. A ensaísta, que nos anos 1990 trouxe sangue e tesão para a história cultural, já havia mostrado sua cultura ampla e capacidade para a polêmica com o hoje clássico Personas sexuais. Entre as marcas mais associadas ao seu nome estava a sensibilidade ao pop, a sexualização excessiva e a tensão entre a sofisticação e a decadência.

Por isso, seu novo livro poderia sugerir a consagração de um estilo mais ligado ao efeito que à substância. Nada mais distante de Imagens cintilantes. Camille, sem fugir a seu estilo singular e exibicionista, nem por isso reescreve a história da arte a partir, por exemplo, da exacerbação da sexualidade. Ela está presente, mas sempre de forma heurística. O que sobressai no livro é a leitura ousada, pessoal e acurada. Pode não ser a Camille mais controvertida, mas se mantêm as referências, que vão da psicanálise à sociologia, da história da arte ao feminismo, da cultura clássica à pos-modernidade.

Numa observação inteligente, a ensaísta afirma que a civilização é definida sempre por um duplo padrão: o direito e a arte. “As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte exprime nossa alma.” Com isso, a relação entre a arte e seu tempo é sempre um momento de tensão: por vezes a arte glorifica o direito; em outros momentos, cabe a ela enfrentar a lei. É nesse registro que entram em cenas as análises de Camille Paglia, provocadas a um só tempo pelo senso de individualidade e conexão com a sociedade. Há uma recusa em bloco do marxismo, por um lado, e da psicologia, por outro.

Ciente da ausência da arte no cenário corrompido pelo mercado e pela força venal das imagens em todos os contextos, a revolucionária Camille não se exime de certo exercício “conservador”. Suas análises trazem elementos da história da arte, têm a liberdade da interpretação, mas sempre se constituem como a busca da educação do olhar para o detalhe significativo. Contra a frivolidade da arte (que só ganha espaço nos recordes de leilões ou nos roubos espetaculares), a ensaísta propõe sua guerrilha: “A arte não é um luxo, é uma necessidade sem a qual a inteligência criativa definha e morre”.

Imagens cintilantes não é um conjunto de insights. Cada uma das 29 obras analisadas ganha um pequeno ensaio, não apenas uma legenda ampliada. A capacidade de resumir informação consistente, contexto histórico e análise pessoal é o maior mérito do estilo da escritora, certamente amadurecido em suas diatribes na imprensa.

Para quem quer reencontrar a autora de Personas sexuais (mesmo com o cuidado tomado em evitar interseções entre as duas obras), há curiosas reflexões sobre a sexualidade na arte de Ticiano, Agnolo Bronzino e Picasso. Sem falar de algumas boas definições, que conjugam inteligência e estilo, como a descrição das cariátides, da agonia Laocoonte como expressão contemporânea, das ilações sociológicas acerca da cor da pele da rainha Nefertari, da perversidade autoconsciente do rococó.

Para concluir, Camille Paglia recorre à saga Star wars, de George Lucas, a qual defende ardorosamente. “Nada que eu tenha visto nas artes visuais dos últimos 30 anos foi tão ousado, belo e emocionalmente irresistível como o espetacular clímax no planeta vulcânico de A vingnça de Sirth (2005), de Lucas.” Camille explica por quê. Cabe ao leitor apresentar seus argumentos. Imagens cintilantes se mantém como uma conversa sempre interessante, mesmo em meio às eventuais discordâncias.

PONTOS DE VISTA: ARTISTAS E SEUS REFERENCIAIS
Organizado por Simon Grant
Edições Sesc, 208 páginas, R$ 65

IMAGENS CINTILANTES – UMA VIAGEM ATRAVÉS DA ARTE
De Camille Pagila
Editora Apicuri, 204 páginas, R$ 49

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