Assim falou NIETZSCHE

O pernambucano João Evangelista Tude de Melo Neto prepara volume de verbetes sobre as ideias do pensador alemão. Ele está presente na MPB, no cinema e até no Big brother

por 04/10/2014 00:13
Ivan Melo/Esp.DP/D.A Press
Ivan Melo/Esp.DP/D.A Press (foto: Ivan Melo/Esp.DP/D.A Press)
Fellipe Torres



Pensador central na história da filosofia, o alemão Friedrich Nietzsche foi capaz de prever, no século 19, o atual momento da civilização ocidental. Profetizou um tempo de esvaziamento, a quebra de grandes paradigmas e o afrouxamento de ideologias. A situação é fruto do colapso da sociedade, resultado do choque entre a moral cristã e a razão esclarecida – a “morte de Deus”.

João Evangelista Tude de Melo Neto, doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Católica de Pernambuco, prepara, em parceria com outros estudiosos, Léxico de Nietzsche (Editora Loyola), livro de verbetes referentes ao filósofo. De acordo com ele, o niilismo contemporâneo pode ser detectado em fatos como o saque coletivo ocorrido em Abreu e Lima, em maio, durante a greve da Polícia Militar de Pernambuco. A sensação de falta de vigilância (divina ou mundana) vai se tornando uma característica do mundo contemporâneo.

Melo Neto explica a origem da “morte de Deus”: crítico do pensamento metafísico, Nietzsche se refere ao esfacelamento de fundamentos da civilização ocidental no que diz respeito à moral, ao campo epistemológico, à ciência. “Depois da quebra das estruturas fundantes da civilização, a filosofia mudou. Vemos a marca de Nietzsche em Heidegger, na Escola de Frankfurt (na dialética do esclarecimento, o fracasso do iluminismo denunciado por Adorno e Horkheimer), no existencialismo (a ‘morte de Deus’ é premissa para a noção de liberdade em Sartre) e nos franceses dos anos 1960 (Deleuze, Derrida, Foucault, em Wittgenstein), observa o pesquisador. E cita a influência do pensador na obra de Sigmund Freud. “Algumas teses freudianas sobre violência, repressão dos impulsos... Tudo já estava em Nietzsche”, afirma ele.

No Brasil, o filósofo faz sucesso no cinema, nas prateleiras de livros de autoajuda e até no Big brother, lembra o professor pernambucano. A seguir, ele comenta o legado de Nietzsche e a influência de suas ideis em nosso país.

MORTE DE DEUS

“Nietzsche diz que a civilização ocidental é sustentada por dois pilares: a moral cristã e a razão esclarecida, que não aceita dogmas, tiranias. Esses dois pilares entraram em choque, o que promoveu a morte de Deus. De um lado, temos uma razão que não aceita dogmas; do outro, a moral baseada no dogma de que Deus é eterno, transcendente e imutável. Há um colapso da civilização ocidental. A morte de Deus é um problema, pois some a referência moral e a gente cai no niilismo. No Brasil, ainda somos muito cristãos. Mas o niilismo só cresce.”

NO BRASIL

“O mais antigo documento sobre a recepção de Nietzsche em nosso país é de Tobias Barreto, um dos cabeças da Escola do Recife. No século 19, ele já tinha um diálogo com questões do jovem Nietzsche. No começo do século 20, o pensador alemão foi apropriado por anarquistas espanhóis, em São Paulo, atraídos pelo caráter subversivo e iconoclasta dessa obra. Ele foi também apropriado pela extrema-direita, pelo integralista Plínio Salgado. Nos anos 1960 e 1970, solidificou-se na academia um Nietzsche francês, reflexo da interpretação de Gilles Deleuze e Michel Foucault. Apenas nos anos 1980 surgem tentativas de entender de fato a filosofia de Nietzsche, com a professora Scarlett Marton e o Grupo de Estudos Nietzsche (GEN). Mas não diria que temos uma escola brasileira unificada de estudo de Nietzsche.”
 
FILÓSOFO POP?


“Nietzsche está no cinema, na revista, na TV. Nietzsche vende bastante. Você vê livros do tipo Nietzsche para estressados, filmes como Quando Nietzsche chorou – muito ruim, muito bobo, aliás. Tem o Pedro Bial citando o filósofo no Big brother. Já vi até na novela... Em alguns casos, ele aparece de modo mais refinado, como no novo filme de Woody Allen. Nietzsche está na música, com Caetano, Raul Seixas, Jorge Mautner, Banda Eddie. Nas artes plásticas, com Hélio Oiticica; na sociologia, com Sérgio Buarque de Hollanda; na literatura, com Monteiro Lobato, Clarice Lispector e Oswald de Andrade. No teatro, com José Celso.”

ETERNO RETORNO

“O filósofo alemão desenvolve a ideia de que o tempo não é linear, mas cíclico. Tudo muda, e muda de maneira circular. A concepção judaico-cristã é de que a história é linear com um final escatológico. Existe um “além”. Essa cosmovisão legitima a moral cristã. Nietzsche defende que há apenas um tempo, a natureza é a mesma, o tempo é eterno, circular, então tudo retornaria eternamente. Assim, a única referência para a vida terrena seria a própria vida terrena.”

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