Opinião cada vez mais pública

por 04/10/2014 00:13
Marcos Vieira/EM/D.A Press
Marcos Vieira/EM/D.A Press (foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press )
João Paulo

Amanhã é dia de votar. Desde que o brasileiro recuperou o saudável princípio democrático de escolher seus governantes e representantes no Legislativo, cada eleição tem se caracterizado por um jogo de ganhos e perdas para a cidadania. Democracia é dessas importantes experiências que só se aprendem com a prática. Como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, %u201Camar se aprende amando%u201D. Em matéria de amor e democracia, temos sempre o que avançar. Um pequeno balanço, nesta véspera tensa, talvez sirva menos para definir o melhor candidato do que para ajudar o eleitor a refletir sobre o exercício de sua tarefa cidadã. Afinal de contas, só temos essa chance de dois em dois anos. As eleições de 2014 tiveram em sua trajetória momentos de confirmação e ruptura. No campo da continuidade, o processo começou como mais um embate entre os dois maiores partidos ideológicos brasileiros, o PT e o PSDB, com propostas que foram se definindo como desenvolvimentismo social e neoliberalismo. Fosse assim até o fim do processo, trataria de uma reedição de pleitos anteriores, o que confirmaria um estilo de política muito peculiar no país: um corte explícito no campo das ideias e uma proximidade na prática com governos de coalizão que descolorem os princípios em nome da governabilidade. No atual momento, a distinção entre os dois projetos, que já era clara para a sociedade há mais de uma década, ganhou como sempre a tradução dos temas apresentados pela conjuntura, por um lado, e pelas estratégias de campanha dos dois candidatos, por outro. Ou seja, mais que aclarar os propósitos, os dois partidos trataram de buscar reconhecimento frente ao eleitor, não importando se para isso seriam necessárias distorções, arranjos e até má fé explícita, de parte a parte. Jogo duro. Há um princípio dinâmico nas democracias que faz alternar momentos de consenso com outros de convivência com a diferença. Numa campanha eleitoral, a diferença não tem vez, já que o resultado precisa expressar um consenso (só há um vencedor): cada lado se arroga de ter toda a verdade. Não há adversários, mas inimigos. Por isso é comum que, em assuntos que são identificados com o oponente, o candidato lance mão do surrado argumento das primícias ou da emulação. %u201CEu fiz primeiro%u201D; %u201CVocê está surfando nas minhas conquistas%u201D; %u201CVou fazer o que eles fazem, mas muito melhor%u201D. Ainda no campo das continuidades, ou das tristes recorrências antidemocráticas, essa foi uma campanha feita de mentiras. É preciso distinguir dois tipos de mentiras no terreno da política. Há aquela que distorce a realidade ou apresenta dados incorretos %u2013 uma forma objetiva de faltar à verdade. E há aquela que nem sequer coloca em questão a veracidade das informações, uma vez que se ampara na estratégia do resultado do discurso, não de se sua coerência %u2013 uma forma imoral de tratar dos temas de relevância pública. Assim, em campanhas dirigidas pelo marketing (e não pela política em si), vale mais a sensação de verdade. Essa tem sido a marca por excelência das agendas eleitorais brasileiras, com sua inescapável tendência para o moralismo. Mais ainda: para o dedurismo como método. Mas se tudo se encaminhava para a mesmice, a mudança do quadro em razão da morte do candidato do PSB, Eduardo Campos, incorporou um elemento distinto às eleições, que matizaram tanto o antagonismo maniqueísta habitual como as estratégias convencionais de moralização da campanha. No primeiro momento, assustados pela alteração do rumo do eleitor frente ao novo cenário, os partidos concorrentes passaram a mirar em Marina Silva suas armas. Para o bem e para o mal. No primeiro momento, trazendo para si o que ela apresentava de novo. A ideia de mudança se traduziu como defesa da alternância no poder pelo PSDB de Aécio Neves e, mesmo na situação, pelo PT de Dilma, que cunhou o arguto slogan %u201CMuda mais%u201D. Em seguida, os dois partidos passaram a identificar os limites e inconsistências da nova candidata, comparando-a sempre com o que julgavam de mais frágil no adversário. Assim, Marina foi definida como quinta coluna da financeirização e elitismo do PSDB e, na via inversa, como herdeira do passado %u201Ccorrupto%u201D e aparelhado do PT. A entrada da nova candidata do PSB não significou uma opção no jogo estabelecido, mas revelou que muita gente não se sentia parte dele. A eleição para presidente, de certa maneira, começou de novo. As vozes Outro elemento que trouxe inovação para as eleições %u2013 talvez o mais importante e de maior repercussão a médio prazo %u2013 foi a entrada em cena da internet, embora não inédita, mas de forma nunca vista. Trata-se não só de um novo instrumento de disseminação de informações %u2013 e por isso de ampliação das demandas sociais %u2013 como de um novo ambiente de circulação de projetos, interesses, fiscalização, propaganda e, o que é mais desafiador, de cobertura jornalística de todo os processos sociais e políticos, incluídos aí as eleições. Quem pensava a internet como apenas um meio se deu mal. Ela não é uma mídia a ser incorporada no cardápio da informação, mas um processo que altera a própria lógica da política. A participação dos usuários da rede precisa ser analisada em vários aspectos, todos eles relevantes. O primeiro é a saudável descentralização e ampliação das vozes, que passam a oferecer seus discursos para um público cada vez maior. É importante perceber que esse novo campo de fala altera os pressupostos que, por séculos, estão na base da sociedade dita democrática. Como salienta o linguista e cientista político americano Noam Chomsky em seu livro Mídia %u2013 Propaganda política e manipulação, vivemos numa democracia de espectadores. Mudar o jogo, passando de plateia a ator, é uma tarefa para a qual a internet tem contribuído bastante. Nossa concepção de política é elitista, no sentido próprio da palavra: as eleições (o momento considerado fundante da democracia representativa) se destinam a escolher as melhores pessoas para o exercício dos cargos públicos. Há um nítido viés meritocrático, mas que não esconde também uma concepção meio salvacionista. E, curiosamente, tanto a teoria liberal quanto o leninismo parecem defender essa escolha dos mais competentes ou mais orgânicos, dos mais preparados ou dos mais vanguardistas, que se sobressaem da massa anódina. Mesmo com propósitos opostos, há certa homologia no processo. O que vem fundamentando a ideia de que as eleições são momentos de escolha dos melhores é certa concepção de opinião pública que já não se sustenta. E é aí que a internet pode contribuir com uma saudável anarquia. A possibilidade trazida pela comunicação em rede vem desmanchando um tecido centralizado, autoritário e moralista que foi construído ao longo do tempo. Nesse sentido, a internet trouxe para a cena, além do poder de vocalizar a diferença, uma força convocatória nova, extremamente eficaz e democrática. Além de esfacelar a opinião pública tradicional, da qual grande parte da população não fazia parte por vários instrumentos de exclusão, a nova rede de comunicação estabelece um canal de crítica mais direto e imediato, de forte poder construtivo. Até pouco tempo atrás, quem não gostava, por exemplo, de um jornal ou emissora de televisão tinha como única arma negar-se a receber sua informação. A grande recusa estava na esfera do consumo. Hoje, além de mudar de canal, o cidadão pode oferecer à arena de debates um contradiscurso com ampla capacidade de compartilhamento. No entanto, se há um ganho indiscutível no âmbito da cidadania, nem sempre se percebe o mesmo no campo da comunicação. A internet ainda não foi bem compreendida pelo jornalismo. De um lado, os grandes veículos ainda não descobriram como fazer de um meio de diálogo um instrumento para um padrão de comunicação que sempre foi vertical. Por outro, os blogs, que muitas vezes se apresentam como alternativa ao jornalismo tradicional, evidenciam sinais de retrocesso a um tipo de jornalismo panfletário, romântico e pouco consistente, quase no padrão do século 19. Se o jornalismo livre e independente é um fator distintivo e fundamental da democracia, é preciso avançar dos dois lados. A chamada grande imprensa não deu o salto de qualidade oferecido pelo novo meio; as novas experiências surgidas com a web ainda não incorporaram a rica tradição epistemológica do jornalismo, patinando num pântano de sensações eficaz, mas incapaz de criar conhecimento e estabelecer um território fértil de discussões. Quem é leitor de blog partidário não aprendeu nada com a cobertura, apenas refez seus preconceitos; quem acompanhou pela grande imprensa não se sentiu vivendo num novo território informativo. A internet ajudou a derrubar um mito: o de que o jornalismo não produzia saber. A grande tarefa está dada, juntar os dois mundos em nome de uma nova forma de comunicação e construção da opinião pública. A cobertura das campanhas pela imprensa tradicional, no misto agenda/denúncia/pesquisa, não se mostrou à altura dos eleitores, que hoje dispõem de muito mais informação prévia e capacidade de reação. Em razão desse duplo limite, a comunicação sai do processo como um setor de grande importância estratégica, mas ainda permeado de desafios para se tornar, a um só tempo, mais democrático e mais consistente. Os temas Outro aspecto importante das eleições de 2014 é a composição de gênero assumida pelo processo. A presença de duas mulheres %u2013 Dilma Roussef e Marina Silva %u2013 entre as candidatas de maior expressão é um signo que merece atenção. Não se trata de postulantes que se escoraram em demandas ditas %u201Cfemininas%u201D, mas que o tempo todo, com suas diferenças, assumiram causas universalistas sem qualquer contestação da força de sua representação. Há nisso um sinal de avanço da sociedade, mas é preciso destacar também o papel das candidatas nesse processo. A presença de Dilma e Marina lembra um curioso episódio ocorrido em 1907, na Alemanha. A economista e revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo e sua amiga Clara Zektin tinham saído para passear e eram esperadas pelos líderes da esquerda alemã para um encontro político. Seu atraso foi interpretado com temor pelos companheiros Kautsky e Bebel, que ficaram aliviados quando as amigas chegaram sãs e salvas (havia motivos reais para o medo). Rosa, sem perder o bom humor, disse: %u201CSim, vocês poderiam ter escrito nosso epitáfio: aqui repousam os dois últimos homens da socialdemocracia alemã%u201D. Não estava muito longe da verdade, como, dramaticamente, mostraria a história alguns anos depois. Dilma e Marina %u2013 e seria justo incorporar Luciana Genro no time %u2013 poderiam ser consideradas mais %u201Chomens%u201D que a maioria dos candidatos. A biografia das candidatas, além de mostrar a força da militância construída em trabalhos de base, de organização partidária e de exercício de funções na esfera pública, evidencia um modelo de política bastante respeitável. A tentativa, por exemplo, de fragilizar Marina Silva como liderança ou esvaziar sua pauta ecológica como reacionária é atitude que não contribuiu para o debate. Do mesmo modo, a avaliação da candidatura de Luciana Genro como um %u201Ccaso%u201D familiar é apenas um desvio machista, que desconsidera a rica trajetória da militante. O avanço que levou à presença marcante de mulheres na disputa é um dos saldos da campanha pífia que foi oferecida aos eleitores. Houve uma boa novidade no tratamento de alguns temas. Questões como aborto, religião, direitos LGBT, descriminalização das drogas e mudança do patamar da maioridade penal, que já tiveram função meramente dispersiva em outros momentos, ganharam sua real dimensão. Ninguém vai escolher um candidato por acreditar ou não em Deus, por exemplo, mas cada uma das questões acima evidencia uma posição que reflete, em seu conjunto, a visão de direitos humanos do candidato. Não são mais temas de corte, feitos para constranger, mas questões de cidadania, que definem o caráter do candidato, algo relevante para o juízo do eleitor. Por fim, a campanha que se encerra hoje deixou alguns temas intocados que merecem reflexão. Dois deles devem ser guardados com atenção pelo cidadão, que amanhã, ao fim do dia, se torna apto a cobrar resultados e consistência dos eleitos: a cultura e as políticas para a terceira idade. Muito se falou de saúde, educação, transporte, administração, energia, serviços, tributos, reforma política, segurança e comunicação, entre outros temas canônicos nesse processo. No entanto, nem mesmo tangencialmente a cultura e o envelhecimento da população foram temas de destaque. E não se trata de assuntos menores ou particulares, mas de índices de civilização. A cultura é uma das grandes indústrias potenciais do país e o papel do Estado é decisivo na mudança de rumos, tirando o setor do âmbito do mercado e do entretenimento para dar a ele a vocação estruturante que vem tomando em todo o mundo. O debate é longo, difícil e necessário. Envolve políticas de Estado, relação com a iniciativa privada, abertura a novos perfis de produção e fruição. Uma indústria que não apenas reflete o Estado, mas que é capaz de influir sobre ele de forma crítica. Possivelmente, a melhor política feita hoje no Brasil esteja brotando do setor cultural em parceria com os movimentos populares, sobretudo vindos da periferia do sistema. E, finalmente, é urgente dedicação ao tema do envelhecimento da população, com a chegada de vez do novo padrão demográfico. A nova realidade, com a qual já convivemos, impacta todas as áreas da administração pública e não vai esperar mais para mostrar a singularidade e a complexidade de suas demandas. Fica na conta dos eleitos, que passaram batidos nas campanhas nutridas por marqueteiros que gostam de números, mas não gostam de gente. Com o fim do jogo, a vida começa. Bom voto.

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