Epopeias MINEIRAS

Autor do romance O barbeiro de Vila Rica, Fuad G. Yazbeck soube dosar ficção e história para recontar a saga de Tiradentes. O personagem e o escritor não se renderam à morte

por 04/10/2014 00:13
Beto Novaes/EM/D.A Press
Beto Novaes/EM/D.A Press (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
Ângela Faria



Nem sempre a ficção é amiga dos fatos. Essa, digamos, incompatibilidade de gênios pode até acabar mal: não são poucos os romances históricos que transformam lenda em “verdade”. Entretanto, há clássicos da literatura capazes de conscientizar o leitor a respeito de seu próprio passado. O mineiro, por exemplo, deve muito a Cecília Meireles. Ao transformar a saga de Tiradentes em versos, a autora de Romanceiro da Inconfidência emociona, arrebata e ensina. “Liberdade – essa palavra, que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”, escreveu ela.

O “sonho humano”, certamente, moveu Fuad G. Yazbeck. Esse mineiro de Juiz de Fora trabalhou em refinaria de petróleo, estudou economia, bateu ponto no Ministério da Fazenda e fez mestrado em filosofia. Mas ele gostava, mesmo, era de imaginar estórias dentro da história. Em 2008, publicou O segundo degredado (Record), romance sobre um homem abandonado por Pedro Álvares Cabral no litoral baiano. Cinco anos depois, um câncer implacável não o impediu de concluir O barbeiro de Vila Rica. Inventou o protagonista Alexandre, nascido durante o terremoto que arrasou Lisboa, que veio garoto para o Rio de Janeiro e se tornou amigo de Tiradentes.

Yazbeck morreu em janeiro de 2013, antes de O barbeiro... ser lançado, o que ocorreu em agosto deste ano. Pesquisador aplicado, esquadrinhou os Autos da devassa da Inconfidência Mineira, atento, como dizia, aos “interesses de ocasião” escamoteados em depoimentos contidos naquelas páginas. Seu Tiradentes é “gente como a gente” e menos herói, embora muito mais corajoso do que os poderosos companheiros de conspiração. Joaquim Silvério dos Reis, enfatiza ele, não foi o único traidor nessa trama.

O romancista mineiro faz o leitor se aventurar com o português Alexandre pelas Minas setecentistas, subir com ele pelo Caminho Novo, chegar a Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto e procurar abrigo na Estalagem do Pai e Mãe. Anos depois, o portuguesinho é o confidente do futuro mártir. Com a cabeça enfiada num chapéu de abas largas, a gola do capote a esconder-lhe as orelhas, assiste à execução do “traidor”. Entre lágrimas, lembra-se de uma frase do mestre: “Morrer é fácil, meu pobre Alexandre, difícil é viver subjugado”. A trama tem outros narradores: a mulher que criou Alexandre e um observador daqueles fatos históricos.

A indesejada das gentes não rondou apenas o mártir e seu pupilo. A certa altura, Yazbeck pediu ao amigo Laurentino Gomes, autor dos best-sellers 1808, 1822 e 1889, que concluísse O barbeiro..., caso o câncer o levasse. Não foi preciso tanto. Coube ao jornalista escrever o prefácio do romance, saudando “a viagem fascinante, plena de surpresas e descobertas” inventada pelo mineiro. Há menos de dois meses, Gomes voltou a Juiz de Fora para o lançamento de O barbeiro...

“À primeira vista, o texto parece simples, ligeiro e despretensioso. É só aparência”, anota Laurentino. “Ao avançar pelas primeiras páginas, o leitor logo se dá conta de estar diante de uma história bem contada, na medida exata, sem mais nem menos, que o leva à jornada de dois séculos e meio atrás pela história do Brasil”, avaliza o autor de 1889.



O BARBEIRO DE VILA RICA
. De Fuad G. Yazbeck
. Record, 349 páginas, R$ 42


Entrevista



Laurentino GOmes
Jornalista e escritor

Fantasia e risco

O que chamou a sua atenção no livro de Fuad G. Yazbeck?

Conheci Fuad Yazbeck algum tempo depois de publicar o meu primeiro livro, 1808. Estávamos no Forum das Letras, da nossa amiga Guiomar de Grammont, em Ouro Preto. A empatia foi imediata. Fuad já tinha publicado O segundo degredado, que li com imenso prazer. Desde então nos tornamos grandes amigos. Infelizmente, essa amizade durou pouco. Nos anos seguintes, Fuad enfrentaria de forma corajosa um câncer devastador, que ameaçou a conclusão de O barbeiro de Vila Rica. A certa altura, ele chegou a me pedir que me encarregasse de terminá-la, caso ele morresse antes de chegar ao final da obra. Foi um momento dramático e muito difícil para todos nós, seus amigos e familiares. Por sorte, Fuad conseguiu escrever o livro e tive o privilégio de fazer o prefácio. Faleceu logo em seguida, em janeiro de 2013, na mesma semana em que eu estava terminando as pesquisas de 1889, no Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, o que me deu a chance de lhe dizer um último adeus. O barbeiro de Vila Rica é um livro muito bem pesquisado e escrito, que joga luzes novas na Inconfidência Mineira e no seu principal personagem, Tiradentes, mesmo sendo um romance histórico.

Romances históricos não têm muita tradição no Brasil. Qual é a importância desse tipo de literatura?

Esse gênero literário faz enorme sucesso em outros países, como França, Inglaterra e Estados Unidos. Entre as grandes obras da literatura universal que se encaixam nesse perfil estão, por exemplo, Os miseráveis, de Victor Hugo, que tem como pano de fundo a Revolução Francesa; Guerra e paz, de Leon Tolstoi, sobre as Guerras Napoleônicas na Rússia; e História do cerco de Lisboa, de José Saramago, que reescreve a expulsão dos mouros da capital portuguesa com base na imaginação e nas fantasias de um revisor de livros. No Brasil, há bons exemplos de sucesso, caso de Lima Barreto, autor de Policarpo Quaresma, romance ambientado no Rio de Janeiro sob a ditadura de Floriano Peixoto; e Érico Verissimo, com a série O tempo e o vento, sobre as revoluções no Rio Grande do Sul do século 19. Mas diria que esse gênero, na atualidade, atrai pouco os leitores brasileiros, pelo menos no que diz respeito à produção literária nacional. Hoje, as obras que mais vendem aqui são de estrangeiros, como o britânico Ken Follet, autor de Os pilares da terra, e a norte-americana Marion Zimmer Bradley, com As brumas de Avalon. Isso é parte de um fenômeno mais amplo, que não se restringe ao romance histórico. Infelizmente, a literatura de ficção brasileira em geral tem feito pouco sucesso entre os leitores, com a rara exceção de Paulo Coelho. Basta ver a lista dos livros mais vendidos nesse gênero, dominada por autores estrangeiros.
 
Romance histórico é ficção, obviamente. Não há o risco de o leitor “confundir as bolas” e tomar como fatos as passagens inventadas pelo escritor? Não se corre o risco de desaprender história?

Esse é, de fato, um grande risco. O escritor de romance histórico não tem a obrigação de seguir qualquer metodologia de pesquisa nem de submeter suas conclusões a um processo de validação acadêmica. Também não está sujeito a respeitar as fontes originais e convencionais do estudo de história. Isso pode induzir o leitor à confusão entre história fictícia e história real. Portanto, escrever romance histórico exige do autor uma atitude de grande transparência de propósitos em relação ao leitor.

Como fazer isso?

É preciso deixar claro desde o início que se trata de um livro de ficção, ou seja, de história romanceada. Idealmente, um romance histórico deveria ter na sua apresentação uma explicação detalhada do roteiro e das fontes de inspiração usadas pelo autor. Como escrevi no prefácio do livro de Fuad Yazbeck, infelizmente, são numerosos os escritores de romances históricos que se refugiam atrás da ficção como se bons historiadores fossem, sem dar conta disso aos leitores. Usam a fantasia apenas como disfarce para esconder lacunas do conhecimento histórico que não foram capazes de preencher pela pesquisa. Trata-se, portanto, de uma questão ética, que, se descuidada, pode comprometer a credibilidade do autor.

Você é leitor de romances históricos?

Por razões de trabalho, em geral leio mais livros de não ficção do que de ficção nessa área. Mas existem boas exceções nessas leituras, que ajudaram a construir a minha carreira de escritor. Li com grande encantamento A guerra do fim do mundo, romance histórico de Mario Vargas Llosa sobre Canudos. Sou fascinado por Esaú e Jacó, de Machado de Assis, que tem como pano de fundo a Proclamação da República no Rio de Janeiro. Sem contar as obras de Tolstói, Victor Hugo e Érico Veríssimo, que li ainda nos meus tempos de estudante, no Paraná.

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