O mundo pode ser fabuloso

A portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen e o norte-americano E. E. Cummings mostram poesia, profundidade e sensibilidade em dois livros destinados ao público infantojuvenil

por 27/09/2014 00:13
Ilustrações: Veridiana Scarpelli/divulgação
None (foto: Ilustrações: Veridiana Scarpelli/divulgação)
André di Bernardi Batista Mendes



A editora Cosac Naify acaba de lançar duas obras, dois livros de dois grandes poetas: Sophia de Mello Breyner Andresen e E. E. Cummings. Voltados para o público infantojuvenil, A menina do mar e 4 contos, respectivamente, ampliam a sensibilidade e o talento de dois grandes nomes da literatura mundial. A portuguesa Sophia conta a história de um rapaz, um miúdo que “adorava o verde das algas, o cheiro da maresia, a frescura transparente das águas.” O americano E. E. Cummings reúne em seu livro, o único escrito para crianças, histórias que criou para a filha.

Publicado originalmente em 1958, A menina do mar é uma pequena obra-prima de Sophia de Mello Breyner Andresen, importante escritora portuguesa do século 20. O livro conta a história de um menino que mora na praia e, certo dia, ouve uma estranha gargalhada, que mais parece ter vindo de debaixo d’água. Ao seguir o som desconhecido, depara-se com cena curiosa: uma garota, pequena e de cabelos azuis, dança com um polvo, um caranguejo e um peixe. Desse encontro nasce uma amizade que supera a diferença entre os dois mundos, a terra e o mar. Um ensina ao outro as particularidades do seu lugar de origem, até que o menino nos ensina uma importante lição: o que é a saudade.

Dizem as más línguas que todas as crianças são bobas. Nada mais certo. A árvore é boba; o vento é bobão; o amor, até o amor, é bobo e ridículo. E o mar? O mar é de uma tolice desmedida. É o mesmo que dizer: sem tamanho. A poeta Sophia era uma pessoa boa de boba, com sua alma limpa de uma maresia toda feita de sentimento.

O mar, como o céu, é feito de um azul simultâneo, que molha para o verde até a glória do lilás. Cabe na poesia e na prosa de Sophia uma porção de coisas. Cabem peixes. E também pássaros pelados de asas. Cabem meninos e meninas. Como eles, o que o mar mais sabe fazer é crescer. E tudo aumenta nas mesmas proporções, com a mesma intensidade. Crescem as crianças, crescem os poetas, e, principalmente, dentro deles cresce a saudade, essa lâmina feita de fogo.

A saudade refaz aquilo que fica quando tudo vai embora. A saudade surge, no mais das vezes, nas horas fortes, principalmente no ocaso que inaugura a noite. A maresia cresce diante da lua, que, por sua vez, comanda o humor dos mares. A saudade nasce maior no crepúsculo, nessa hora de perigos, nessa hora de transição, quando tudo silencia diante do incerto. Sophia, por meio da literatura, toca com carinho os corações das crianças, pois inventou um barco para navegações, um barco propício a ventos e primaveras.

Sophia promove uma saudável sensação de encontro. Ela não busca a redenção, isso porque a poesia, a boa poesia, nunca foi pretensiosa. Isso porque nunca foi preciso fugir ou negar a saudade. A prosa poética de Sophia serve para plantar e colher, serve para caber no mar, serve para afogamentos. Essa boa prosa serve, quando muito, para crescer em nós, e em tudo, amizades e benevolências, uma espécie de benquerença propícia e doses de alegria e prazer. As crianças podem subir pelo rio de Sophia, sem rumo e paradeiro.



Não sabem os peixes do pôr do sol, não sabem os peixes da lua. A chuva só chega até o céu dos peixes. Mas, de alguma forma, sabem os peixes das tristezas humanas. Sabem as ondas de nossas tormentas. Por isso a beleza da história de Sophia. Ela nos ensina, ao dizer para os pequenos, lições de ciranda e surpresa. A saudade é algo, um tesouro que mora submerso. Saudades nascem no escuro. Saudades flutuam, como flutuam os peixes. Quando nado, quando nada, aperto, num abraço, saudades da infância. O reino das crianças, o reino daquele rapaz de Sophia, o reino dos sonhos é amplamente, é totalmente submarino.

Sophia de Mello Breyner também esteve, também sucumbiu diante daquela primavera de Bashô. Sophia viu aquelas lágrimas nos olhos do pássaro, nos olhos do peixe. Bashô e Sophia foram crianças. Sophia inventou um modo peculiaríssimo de dizer para elas – e para todos – sobre a lindeza das coisas lindas. Escrever é relativamente fácil; difícil é encantar as almas ainda pequenas. Aquelas almas ainda no início, distantes de palavras como transição e entendimento. Crianças gostam de canções invisíveis. É propício esse jogo, o abrir as portas para o mundo das palavras. Crianças merecem e gostam de só histórias. Sophia de Mello Breyer estabeleceu uma profunda aliança com o mar e com as coisas que o vestem e que o nomeiam.

O mar também tem lá suas toneladas, mas, em contrapartida, a água é levíssima, de uma leveza só. Sophia é poeta das coisas da vida. E uma das maiores e mais belas coisas do nosso mundo é justamente o mar e tudo que nele é e está. Sophia inventou medidas humanas para maresias. Sophia inventou uma história de amor e saudade. Ela propõe mergulho radical para dentro da cor azul. Ao fazer isso, aceitamos como nossos o encanto e as fábulas. Sophia, quero crer, tanto fez, tanto cantou para todos, velhos e crianças, que encontrou suas águas, suas luzes permanentes, num dia limpo.

A POETA




Sophia de Mello Breyner Andresen (foto) nasceu na cidade do Porto, em Portugal, em 1919. Deixou obra extensa, que abrange tanto poesia quanto teatro, ficção e literatura infantojuvenil. A escritora se tornou conhecida por seu posicionamento político e por denunciar a ditadura salazarista. Primeira mulher a vencer o Prêmio Camões (1999), colecionou premiações literárias e medalhas ao longo de sua vida. O mar foi uma de suas grandes inspirações. Sophia morreu em 2004, em Lisboa.

A MENINA DO MAR

. De Sophia de Mello Breyner Andresen
. Ilustração: Veridiana Scarpelli
. Cosac Naify, 48 páginas, R$ 34,90

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