Histórias plurais: coleção revisita o Brasil Nação

Em seis livros, 28 pesquisadores cumpriram a missão de repensar coletivamente a trajetória do povo brasileiro. Seminário em BH vai discutir a construção da nacionalidade em nosso país

por 20/09/2014 00:13
Lilian Schwarcz



Foram seis longos anos de trabalho reunindo seis coordenadores de volumes, 28 autores – entre historiadores, antropólogos, sociólogos, cientistas sociais, economistas, diplomatas – e uma diretora, essa que vos escreve, que no curso do caminho foi mais dirigida do que dirigiu. Não há coleção coletiva sem projeto coletivo, e esse foi urdido por colegas que passaram a, junto comigo, questionar as balizas do projeto e a própria possibilidade de se pensar numa história do Brasil.

Acadêmicos são, em geral, pouco acostumados a receber encomendas ou a escrever para um público amplo sem o porto seguro das notas e citações. Foi por isso que, com alegria, mas igual dosagem de temor, recebi a proposta da Fundação Mapfre, sediada em Madri, e da Editora Objetiva de produzir uma coleção em seis volumes, começando nos anos de crise colonial (1808 a 1830) e encostando no tempo contemporâneo; período que muitos historiadores preferem contornar, uma vez que do presente todos somos donos. Precisaríamos, ainda, elaborar um volume de fotos, o qual, aliás, acabaria por inverter o uso alargado que nós, cientistas sociais, temos dado às imagens, fazendo delas meras ilustrações. Elas são, na verdade, muito mais que reflexos: em vez de produtos, produzem valores.

Confesso que só aceitei a tarefa tendo um grupo de peso a meu lado. Se não posso citar todos os autores, posso, sim, mencionar os coordenadores de volumes desse projeto, que chegou ao final neste ano de 2014. Alberto da Costa e Silva ficou com a coordenação do primeiro volume, que analisou o “transplante” do Antigo Regime em terras tropicais; ou ainda a maneira como o Estado português, fugindo das tropas francesas, reinventou um Antigo Regime transitório nas Américas.

Inversão

José Murilo de Carvalho liderou o volume sobre o Império e mostrou a verdadeira inversão colonial que aqui ocorreu, e como a saída monárquica fincou raízes num continente que ia se inventando a partir de sua matriz republicana. No terceiro volume, por mim coordenado, questionamos a visão da historiografia de se referir ao primeiro período republicano como “Velho”. Hoje, sabemos que o apelido foi criação dos tempos de Getúlio Vargas, que divulgou a noção de “Estado Novo” por oposição ao “Velho”. Nada havia de velha nessa República, que abrigou a entrada dessa verdadeira babilônia de imigrantes e línguas; que viu crescer nas ruas das cidades movimentos de reivindicação por direitos sociais e presenciou o surgimento de um Brasil cada vez mais urbano.

O quarto volume ficou sob a batuta de Angela de Castro Gomes, que mostrou como nesse contexto enfrentou-se “o atraso, o subdesenvolvimento e a dependência”. Termos fortes, eles levaram a uma ampliação radical das redes de educação e dos meios de comunicação. Não por acaso, nesse momento vingaram nossas primeiras leis do trabalho; introduziu-se o voto feminino e implementou-se uma indústria de base e também aquela voltada para os eletrodomésticos. Isso sem abrir mão da dependência do café, nosso ouro negro, e do próprio Getúlio Vargas, que a cada vez se reinventava no poder.

Corrupção


O último volume, orquestrado por Daniel Aarão Reis, encosta nos governos Lula, descrevendo os anos da ditadura militar até chegar ao processo de abertura. Os autores enfrentaram temas da nossa agenda atual, que revela, entre outros, como caminhamos de forma segura para o fortalecimento de processos democráticos, mas como ainda patinamos nos valores republicanos. Estamos falando do mau uso da verba pública, das práticas patrimoniais, da persistência do clientelismo e da corrupção.

Para lidar com tamanha tarefa, fizemos várias “traduções” do projeto original. Em primeiro lugar, se mantivemos as divisões internas, com os capítulos separados por temas – população e sociedade, vida política, Brasil no mundo, processo econômico e cultura –, alteramos aspectos básicos do modelo espanhol. Mudamos, por exemplo, o nome da coleção. Como mostra Lévi-Strauss em O pensamento concreto, um nome é muito mais que um nome, já que muitas vezes vem antes da própria realidade.

A coleção chamava-se História contemporânea; já por aqui, achamos por bem intitulá-la História do Brasil Nação. Nossa aposta é que histórias de longa duração são sempre processos – espécie de carteira de identidade coletiva em mudança –, e que o momento recortado pela coleção construía um projeto específico de nacionalidade.

O que vimos surgir, desde a chegada de dom João e sua corte, foi um destino semelhante, mas também singular ao dos demais países latino-americanos. Basta lembrar que o pontapé inicial dessa partida foi dado por uma monarquia, depois nos transformamos num Reino Unido, tivemos uma emancipação liderada por um rei, e construímos um país independente que adotou a forma monárquica – centrada na figura máxima do soberano –, sendo que desse modelo ainda guardamos muitos resquícios. Além do mais, o país foi não só o último a abolir a escravidão no Ocidente, como o sistema se espalhou por todo o território e deixou raízes profundas no nosso cotidiano.

Termos como “boçal”, “ama de leite” e “ladino” falam de um vocabulário social profundo; elevadores de serviço e quartos de empregada desenham uma arquitetura simbólica e persistente; o preconceito ao trabalho manual é herança das mais dolorosas, isso sem deixar de mencionar nossa mania de esquecer o passado e negar a escravidão. Fato exemplar dessa situação é o nosso Hino da República, que, criado em 1890, um ano e meio depois do final da escravidão, já bradava: “Nós nem cremos que escravos outrora tenham havido em tão nobre país”! Mal havíamos acabado com a escravidão e já havíamos nos “esquecido” dela. Santa memória seletiva.

DEBATE EM BH

Quinta-feira, seminário vai abordar as questões discutidas na Coleção História do Brasil Nação (Fundação Mapfre/Editora Objetiva). Com entrada franca, o evento será realizado no auditório do 4º andar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG, na Avenida Antônio Carlos, 6.627, Pampulha. Promoção do Projeto República, Projeto Brasiliana e da pós-graduação de História.

Programação

9h30 – Mesa de abertura
Com Luís Villalta, Fernando Filgueiras e Lilia Schwarcz

10h – A construção nacional
Com Lilia Schwarcz, Lúcia Bastos e José Murilo de Carvalho

14h – Nação e modernidade
Com Angela de Castro Gomes, Eliane Dutra e Daniel Aarão Reis

Operários, quadro de Tarsila do Amaral pintado em 1933, retrata os povos que formaram o Brasil


. Lilian Schwarcz é historiadora

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